Da época de noviço, conservou a fé. A Bíblia, cheia de orelhas, testemunhava tempo e uso. Embora eu conhecesse vários de seus colegas de seminário, não me lembro dele quando jovem. Em compensação, anos depois, fomos vizinhos e colegas de trabalho.
Certa vez, voltando de uma festa, encontrei-o na rua rodando um pneu. Parecia falar sozinho, excentricidade que eu desconhecia. Mas conversava era com a esposa através da janela aberta: “Não te falei que aparecia alguém pra me levar, mesmo de madrugada? Pois é, a gente precisa ter mais fé.” E concluiu citando Hebreus 11.l: A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos.
Só junto a um viaduto na Pedro II havia borracheiro de plantão. Uma hora depois, estávamos de volta com o pneu recauchutado. Explicou-me que precisava ir a Acuruí bem cedo e estava sem estepe. Daí a urgência daquele conserto tardio, apesar da implicância da esposa.
Na velha Caravan, voltando da Pampulha, avistou uma blitz. Mesmo podendo evitar o encontro, mudando o trajeto, seguiu em frente.
O guarda pediu os documentos, ele apresentou a Identidade e o certificado do carro.
– Sua carteira de motorista, por favor.
– Não tenho.
– Esqueceu em casa.
– Não, seu guarda, não tenho.
– Está vencida?
– Nunca tirei.
Espantado, o policial ouviu um sermão sobre a hipocrisia da sociedade burocrática, da firma reconhecida, dos carimbos sem fim, impotentes para garantir a ética, o respeito pelas pessoas, uma vida civilizada. “Nunca tirei carteira, mas sei de cor cada artigo, cada parágrafo do Código Nacional de Trânsito e sei que o cidadão é responsável pela segurança própria e alheia, o veículo maior cuidando do menor, todos protegendo o pedestre”.
Quando o guarda ia abrir a boca, meu amigo pegou a Bíblia no console do carro e, brandindo-a, disse que ali estavam todas as leis necessárias para a vida e a convivência fraterna . De cor, citou epístolas, capítulos e versículos, um caudal tão poderoso que o guarda não via a hora de liberar o bizarro motorista.
Além de trabalhar oito horas diárias na Fundação João Pinheiro, lecionava filosofia, à noite, em uma faculdade. Por isso, não perdia ocasião de curtir o sossego de Acuruí, onde mantinha uma casa antiga, um quintal cheio de jabuticaba e passarinho.
Lá, numa tarde fria, ficou à janela vendo a neblina chegar com a noite. Então, veio vindo o mendigo do lugar, que, para calibrar o frio, vivia bêbado. Olhou as pedras ao pé do poste, ajeitou uma como se fosse travesseiro e deitou-se.
Compadecido, meu amigo chamou o filho:
– Acabou de deitar, a cabeça apoiada na pedra. Leva um travesseiro para ele.
Daí a pouco, névoa espessa, noite se fechando, novo chamado:
– Marcelo, olha lá: enroscado de frio, ele não vai conseguir dormir. Pega um cobertor pra ele.
O homem enrolou-se todo e, antes de cobrir a cabeça, apontou para a lâmpada no alto do poste e pediu:
– Pode apagar a luz, por favor?
CURTO EPÍLOGO
Depois de muito tempo, reencontrei- o no Facebook. Jeito feliz, exibia a filhinha, nascida da relação com uma jovem com quem vivia num sítio – cabeludo, feliz, meio riponga. Uma vez, no meio da tarde, ele me disse : “Hoje tou meio esquisito, acho que vou viajar”. Parece que viajou de repente, sem tempo para esquisitices.
Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Donec nec mauris interdum, suscipit turpis eget, porta velit. Praesent dignissim sollicitudin mauris a accumsan. Integer laoreet metus