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Olavo Romano

Na Getúlio Vargas, encontro Zeneide e Betinho Duarte com a camisa

da campanha pela paz, que ele vem liderando com obstinação de

maduro combatente. Paramos para um dedo de prosa. “Estou conhecendo

Belo Horizonte”, diz ele. Partindo de quem nasceu e se criou

aqui, a frase pode parecer absurda. Mas a cidade, como a vida, muda

a cada dia. Basta prestar atenção.

 

No calorão da tarde

Duas da tarde, mormaço de fazer gosto, o rapaz

da TV a cabo se espicha no meio da rua, junto

à praça ABC, costas apoiadas na enorme bobina.

Cara de preguiça, olhos bambeando, parece

prestes a cochilar. Imaginando surpreendê-lo distraído,

provoco:

– Um carretel enorme assim, uma linha dessa

grossura, vai costurar o quê?

– Navio! – disparou ele, absurdo e certeiro.

 

Consulta

Elegante e esperto, o velho parou no posto com

um papel na mão. Pelo gesto, percebi que o

frentista não podia ajudar. Apertei o passo e cheguei

a tempo de saber que ele procurava uma

clínica das proximidades. Um quarteirão adiante,

mostrei-lhe a placa do outro lado da avenida e

despedi-me desejando boas notícias na consulta.

– Não é nada não. Só quero ver se eles tiram uma

zoeira no ouvido – disse ele, fazendo um gesto

com a mão junto à orelha .

– E depois que eles tirarem, o que vão fazer com

ela ? – indago.

– Ah, com certeza guardam para alguém que esteja

precisando.

 

Tino comercial

Encerrado o expediente, o lavador de carro abre a tampa do

bueiro e guarda seu material de trabalho: uma lata “de querosene”,

uma esponja grande, um pano, sabão. No mesmo

vão já está o material de outro lavador e, embaixo de tudo,

dezenas de latas amassadas de cerveja e refrigerante, tudo

junto a um emaranhado de grossos fios. Pergunto se não

tem perigo de choque.

– De vez em quando a gente leva; danado de forte!

– E esse tanto de lata amassada?

– Taí pra ver se vende – disse ele, sem fé, antes de fechar

a tampa.

 

Coleguismo

Sábado, uma da tarde, na Savassi, o jovem lavador guarda

seu material no bueiro da Copasa. Percebe meu interesse,

responde educadamente minhas indagações e vai fechando

a tampa. Como se cometesse uma falta, suspende repentinamente

o gesto e pergunta:

– Você ia guardar alguma coisa aí?

 

Com cheiro de magnólia, a primavera chegou

Primeiro foram as mangueiras, perfume de pólen narina aden­tro. Depois, o ipê roxo contra céu ainda azul. E o roxo se fez rosa e durou dias, pois as árvores, como as pessoas, têm ritmos diversos – às vezes divertidos. Aí, o amarelo invadiu ruas e avenidas. E desmentiu velho ditado de que flor de ipê não cai na poeira – elas caíram e as chuvas não chegaram.

No máximo, chegava um pé de vento moleque, revolvendo a superfície amarelada do asfalto. Tanto calor, passarinho nem piava. Uma rara rolinha aprumava voo do chão quente para a árvore que despejava folhas sem parar. E tudo voltava à modorra de noites e dias abrasadores.

Quando a chuva era pura miragem, uma tesoura pairou sobre o mormaço da tarde em lento voo. Embora se garanta que uma andorinha não faz verão, eu entendi que a tesoura soli­tária queria anunciar tempo melhor.

Tentei compartilhar minha esperança com uma amiga, aten­dente num consultório médico. Ela, naturalmente alerta ao mau humor reinante na tarde abafada, entendeu a seu modo minha informação e acrescentou, enfática: – “Não é só te­soura que anda voando não. É canivete, faca, tudo quanto há!” Morto o assunto, continuei buscando finas novidades nos mundos sutis da natureza – mania herdada de meus an­cestrais, que, dependentes dos sinais do tempo no preparo da terra, aprenderam a reparar nos animais, nos barulhos, na brotação das plantas… Notícia alguma, porém, me foi man­dada.

Dia desses, finalmente, desperto com o alegre gargarejo da garrincha, resultado, talvez, da chuvinha prazenteira na madrugada. Mas a novidade vem na brisa da manhã, doce perfume de magnólia cortando meu caminho. Quanto mais nítido e inconfundível, mais intrigante, alma desencarnada, essência pura sem flor correspondente.

Esquadrinho, uma a uma, as magnólias. Apuro olfato, afasto engano. A perfumosa flor, porém, não se apresenta. Sestrosa e dissimulada, oculta-se entre viçosas folhas verdes.

Minha teimosia é finalmente recompensada: bem no alto, ale­gre como uma estrela, eis a primeira flor de magnólia. Olhos atentos e concentrados, enxergo, mais adiante, uma árvore vestida de amarelo, perfumada para a primavera.

Hoje uma jabuticabeira me confirmou, com sua inconfundível fragrância, a boa nova que nem a selva de ferro e cimento pode esconder. E a cigarra anuncia chuva para breve, certe­za de flores e insetos; cantos, cores e passarinhos.

Antevejo saíras riscando o céu atrás de rubras sementes. Sabiás, canarinhos e bem-te-vis caçando nas cumbucas de jabuticaba.

 

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