Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Donec nec mauris interdum, suscipit turpis eget, porta velit. Praesent dignissim sollicitudin mauris a accumsan. Integer laoreet metus

   Por: Olavo Romano

Em julho de 1987, passei duas semanas entre Pirapora e Manga, participando do Museu Fluvial Benjamim Guimarães, instalado no vapor de mesmo nome que, depois de navegar pelo Mississipi, deu com o casco no Velho Chico. Naquele raro banho de cultura barranqueira, minha privilegiada tarefa foi ouvir e gravar relatos de pescadores, caçadores, benzedores, escultores de carrancas, além de mergulhar na alegria das danças e cantigas que povoam aquela expressiva parte do território mineiro que eu não conhecia. O rico material rendeu a extensa reportagem Vai, Benjamim, subir este rio mágico, publicada na revista Globo Rural, com fotos de Oswaldo Maricato. Eu passara o dia 17 no barco, ancorado na cidade de São Francisco. Ouvi incontáveis histórias do Caboclo d’Água, relatos de incríveis pescarias, casos do encantamento que o Velho Chico provoca nas pessoas. Brasilino Braz, antigo estudioso da região, dominava a cena, assistido por outros participantes. Num canto, Henrique Lopes Soares, miúdo, atento e ágil, ouvia tudo. Revivendo cenas de uma vida viajando de canoa, contou o caso da moita que, de repente, virou mareta, FREEPIK palavra que no Houaiss é “onda de rio”. Eu tenho visto tanta coisa nesse rio que era pra eu nem pescar. Uma vez eu ia viajando para Pedras de Maria da Cruz, de madrugada, eu vi uma moita muito grande parada no meio do rio. Estava silenciozinho de vento, não tinha vento nenhum. Quando nós chegamos a uma distância assim de uns vinte metro, aquela moita desapareceu. Virou uma mareta só, igual um motor quando passa no rio. Uma vez, moleque assim de uns dez anos, eu tava pescando na beira de um riacho. O rio tava enchendo. Joguei a linha dentro d’água. Joguei e tô ali. Vez em quando eu via estralar uma coisa qualquer aqui do meu lado. Quando eu pensei que não, eu já tava lá no meio d’água. Aquele barranco correu comigo, eu saí em pezinho, fiquei aprumado lá no meio d’água. Eu nem gritar, gritei. Eu nem pensava. Fiquei sozinho lá. Ali, ao romper do dia. Meu pai tava dormindo ainda. Mas, quando a menina falou, disse: “Henrique morreu!” Eu tava numa distanciazinha de pouco mais de metro do barranco, a água passando. Eu fiquei firme lá no pedaço de barranco. E meu pai chegou e me puxou pelo braço. Puxou eu, jogou lá fora. Quando jogou lá fora, a água cabou de derreter aquele pedaço lá. Encerrados os trabalhos do dia, saímos para uma volta pela cidade – antiga, bem cuidada, povo à porta conversando, antiquíssimo jeito mineiro de viver e conviver. No posto telefônico, a moça me contou que Seu Henrique, pai dela, contara da conversa no barco e disse que ele voltaria no outro dia para me mostrar alguma coisa. Sem internet nem celular, soube da morte de Drummond por telefone e espantei-me com minha tristeza. Lembrei-me de generosa carta do Poeta elogiando Casos de Minas, meu livro de estreia. E do telefonema que lhe dei, pedindo autorização para publicar a carta no segundo livro, coisa que não cheguei a fazer. Seu Henrique apareceu de manhã, mostrando foto dele com um surubi de setenta quilos. “Um bicho desses, na água, pode mais do que a gente, não pode? Como o senhor explica isso?”. A resposta é serena e firme: “É o poder de Deus. Um homem não derruba um boi, que é muito mais pesado, até uma baleia?” Vendo na foto uma isca para prosa mais comprida, pedi que me levasse de barco ao lugar onde ele costumava pescar. Longe do burburinho, ele falou de linhas, anzóis, a paciência que a pescaria pede, a vida no rio, pra baixo, pra cima, seca e água. Numa certa altura, eu perguntei se ele acreditava em cavalo d’água, caboclo d’água, cavalo d’água, porco d’água. “Eu acho que tudo tem na terra, Deus botou debaixo d’água. Mas não é bicho que come gente, garanto. Desde menino rodo esse rio pra todo lado, dormindo nas croas, e bicho nenhum nunca me comeu!” De repente, o primeiro apito do vapor. Motor ligado, rumamos para o porto. Na hora de despedir, ele diz: “Foi muito bom conhecer o senhor. Se algum dia voltar por aqui, aparece lá em casa”. Depois de uma pausa, completou: “Se eu não estiver mais aqui, a gente encontra na Glória”. 

Anúncio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *