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Celso Furtado e JK 

Quando Juscelino Kubitschek anunciou no dia 17 de fevereiro de 1959, numa cerimônia no Palácio do Catete, a Operação Nordeste, seu objetivo não era só lançar um pacote de medidas emergenciais em resposta à seca do ano anterior que deixara um milhão de flagelados. Era também dar uma prova inequívoca de que seu governo, embora já instalado havia três anos, tinha enfimum plano viável para modernizar as estruturas anacrônicas, senão arcaicas, do Nordeste. Era essa a ambição, nada menos. JK estava implantando a toque de caixa o ambicioso plano de metas que deveria levar o Brasil a outro patamar de desenvolvimento. Mas o Nordeste parecia relegado ao fim da fila nas prioridades nacionais. 

Convém lembrar que a seca de 1958 foi a primeira mostrada pela televisão a milhares de famílias de todo o país, que puderam ver imagens de retirantes abandonando suas casas, vagando pelas estradas. Criaram-se frentes de trabalho emergencial, mas a atuação do governo no Nordeste mais parecia de imobilismo. Numa hábil manobra política JK retomou a iniciativa, convocou os governadores e, com a Operação Nordeste ao alcance da mão, comunicou-lhes que o Nordeste passaria a ter a mesma prioridade que a construção de Brasília. O comandante dessa Operação chamava-se Celso Furtado.

Juscelino e Celso eram dois temperamentos com mais diferenças que semelhanças. Das diversas conversas que tivemos, Celso e eu, sobre seus anos no Nordeste e sobre o seu convívio com os três presidentes ao lado de quem trabalhou antes do golpe militar de 1964; de suas anotações e textos que tenho consultado de forma sistemática desde sua morte em 2004, não é arriscado dizer que a Operação Nordeste lançada por JK naquele 17 de fevereiro de 1959 a partir do plano elaborado por Celso Furtado só teve a envergadura que teve porque o primeiro, JK, sabia que teria o segundo a comandá-la. 

Até um mês antes não se conheciam pessoalmente. Celso vivera no exterior por quase dez anos, desde 1949, e regressara em meados de 1958, depois da longa temporada na Cepal e de um ano como pesquisador na universidade de Cambridge. De volta ao Brasil, foi ocupar uma diretoria do BNDE, dedicada, a seu pedido, aos problemas do Nordeste. Era antigo desejo seu “um dia contribuir de forma decisiva para mudar o Nordeste”.2  Passou em seguida a supervisionar o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), um dos muitos grupos que JK criara em 1956, mas que não avançava no acelerado ritmo que o presidente desejava. Como responsável pelo GTDN, Celso fez uma longa viagem pelo Nordeste, detendo-se no semiárido castigado pela seca e em suas consequências para o quadro social nordestino; passou pelo crivo os estudos que ele mesmo coordenara em 1953-55, quando presidira o grupo misto Cepal-BNDE, e adotou, assim, um enfoque macroeconômico a fimde traçar um diagnóstico e uma estratégia de ação para o Nordeste. 

 1 Este texto segue as linhas gerais do trabalho que publiquei em O Nordeste brasileiro em questão: uma agenda para re-flexão.Marcos Costa Lima e Angela Nascimento (orgs.). Ed. UFPE: Recife, 2014; e as de uma palestra proferida no Instituto Casa Grande em setembro de 2016. 

2 A Fantasia desfeita, 1989, arquivo virtual. É nesse segundo livro de memórias que Celso Furtado conta seu convívio com JK e os anos passados no Nordeste de 1958 a 1964. Cf. Obra autobiográficade Celso Furtado. São Paulo: Companhia das Letras 2014. 

No dia 6 de janeiro de 1959 apresentou uma súmula do novo trabalho a JK, numa reunião no Palácio Rio Negro, residência de veraneio da Presidência da República, em Petrópolis. Ali os dois se viram pela primeira vez. Celso teria meia hora para expor o que pretendia executar na região nordestina. Dotado de grande poder de síntese, invejável clareza de raciocínio, e de uma capacidade de convencimento que, sintomaticamente, seus adversários apontavam como um dom que o tornava “perigoso”, Celso falou por trinta minutos — e Jusce-lino “comprou” seu plano de ação para o Nordeste. 

Um mês e pouco depois, ministros, governadores e parlamentares, e a figura franzina e carismática de dom Helder Câmara, se acotovelavam em torno de uma mesa comprida num salão do Palácio do Catete, tendo Celso Furtado e JK às cabeceiras, e uma penca de assessores e jornalistas ao redor. Todos os presentes receberam o pequeno livro Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste.3  Esse estudo ficaria conhecido, por muitos anos, como Relatório do GTDN, mas seu autor é Celso, conforme ele mesmo explicou ao retornar do exílio.4  Quase simultaneamente publicaria A Operação Nordeste,5  uma versão mais sintética e mais política do Relatório, apresentada inicialmente num curso do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB, onde se reuniam os formuladores do nacional-desenvolvimentismo.

A Operação Nordeste foi logo apelidada pela imprensa de Meta 31, em referência aos trinta objetivos previstos no plano de metas de Juscelino. Desdobrou-se em dois atos presidenciais: uma mensagem ao Congresso, encaminhando o projeto de lei para a criação da nova agência, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene); e um decreto criando o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno) que, com sede no Recife, implementaria a nova política enquanto a lei não fosse sancionada. À frente dos dois órgãos executivos, Celso Furtado. Tinha ele 38 anos, uma sólida formação intelectual e acadêmica, reconhecida reputação de economista dedicado aos problemas do desenvolvimento. Não pertencia a nenhuma família da elite política nordestina, não era ligado a nenhum grupo influentedo país, a nenhum partido — sequer o comunista, como tantos de sua geração e amigos seus. Não era, como então se dizia, “empistolado”.

Juscelino Kubitschek entregou a Celso Furtado, durante seu mandato, o destino do Nordeste. Poderia ter optado por um político de seu partido a fimde recuperar o espaço perdido nas eleições de 1958, quando o PSD foi derrotado em Pernambuco e na Bahia; ou por um tecnocrata nordestino de competência já comprovada, ou até mesmo por um intelectual de prestígio que daria seu nome ao projeto e, quem sabe, emprego a apaniguados. Entregar a Operação Nordeste a Celso Furtado demonstrou, em JK, a têmpera do estadista com tino para escolher seus assessores diretos. E neles confia. Celso, de seu lado, lançou-se de corpo, alma e intelecto na empreitada — movido por seu jeito de quem dava um boi para não entrar na briga mas uma boiada para não sair. O encontro no Palácio Rio Negro selou uma empatia, uma admiração de Celso por Juscelino, que certamente foi recíproca. Mais: um e outro ali vislumbraram que partilhavam um visão otimisma sobre as possibilidades do Brasil. 

O otimismo do presidente talvez fosse mais ousado, o de Celso, mais comedido. É bom que se diga, aliás, que Celso considerava um grave “improviso” a forma como Brasília fora construída, sem um planejamento que calculasse suas consequências nas contas do país. 

De toda maneira, estabeleceu-se uma confianç mútua entre JK e Celso naqueles anos iniciais da Sudene. Houve vez em que Juscelino, contrariando a prática polí-tica usual, acatou argumentos de Celso a respeito da in-conveniência de deixar os interesses partidários primarem sobre os técnicos; houve vez em que usineiros inconformados com o projeto de mudança da estrutura agrária da zona canavieira quiseram reduzir os poderes de Celso a meramente consultivos, cabendo os executivos a alguém mais dócil, e o presidente desfez a manobra. 

3Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1959.

4Cf. “Entrevista de Celso Furtado à Revista do Banco do Nordeste”, em O Nordeste e a  Saga da Sudene. 1958-1964. Rosa Freire d’Aguiar (org.), coleção Arquivos Celso Furtado, vol 3. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Celso Furtado, 2009.

5A Operação Nordeste, Celso Furtado. Rio de Janeiro: ISEB, 1959. Reeditado em O Nordeste e a A Saga da Sudene. 1958-1964, op. cit; e em Essencial Celso Furtado, Rosa Freire d’Aguiar (org.). São Paulo: Penguin/Companhia, 2013. 

Celso se referia a JK com um misto de reconhecimento e apreço. Sem dúvida, a Operação Nordeste que o presidente lhe confiou foi o ponto de partida dos anos mais produtivos de Celso como homem de ação. Foram tempos de luta cerrada contra certa elite nordestina avessa a qualquer reforma que acarretasse perda de privilégios, contra políticos da região que emperraram por quase um ano a aprovação da Lei da Sudene no Congresso, contra senhores do latifúndio que enterraram o projeto, modesto porém, de reforma agrária, contra corações e mentes enraizados no atraso que barrava mudanças de estruturas sociais; contra, também, o radicalismo de lideranças que se diziam revolucionárias e miravam, por miopia, o alvo “reformista” da Sudene; contra a direita de sempre e suas surradas acusações de marxismo, leninismo e castrismo dirigidas ao superintendente. 

O sociólogo Francisco de Oliveira tinha pouco mais de 20 anos ao se juntar à equipe inicial da Sudene e menos de 30 ao ser alçado à posição de superintendente substituto de Celso, quando este, em 1962, se dedicou à elaboração do Plano Trienal e assumiu o Ministério do Planejamento. Tem Francisco uma explicação feliz para o sentimento que uniu JK e Celso desde o encontro no Palácio Rio Negro: 

Juscelino comprou ele mesmo; comprou do Celso o otimismo que ele tinha; conseguiu encontrar uma formulação que o autorizava em seu otimismo, que o autorizava no seu romper fronteiras nunca dantes devassadas na sociedade brasileira. Juscelino era considerado pela direita um liberal, e pela esquerda, um farsante e entreguista dos americanos. Ele se movia em terreno movediço e perigoso. Encontrou em Celso a confirmaçãode que estava certo. Celso ofereceu um programa para o Nordeste que, traduzido, era a mesma coisa que Juscelino havia feito para o Brasil. Quando Celso levou a Juscelino as suas primeiras formulações, ele deve ter entrado em êxtase: encontrou a confirmação,por parte de um reputado economista, de que o seu projeto para o Brasil estava certo. E que era preciso levá-lo ao Nordeste, a região mais atrasada. Combinou-se isto com a seca, com o reclamo da direita, com a derrota do partido do governo no Nordeste, e com o enorme poder de Celso de convencer o outro: a sopa caiu no mel.

Anos gratificantes? Penso que sim. Tempos depois, referindo-se às realizações que deram resultados mais perenes, como o primeiro projeto de irrigação que, sob seu comando, se promoveu no médio São Francisco, embrião do atual polo exportador de Petrolina e Jua-zeiro em pleno semiárido; ou como o amplo programa de formação e capacitação que ele pôs de pé com a ajuda de organismos internacionais, e que se desdobrou em cursos e bolsas de estudos para centenas de jovens nordestinos que se tornaram técnicos em desenvolvimento, em irrigação, agrônomos, economistas, geólogos, Celso reconhecia que sem o entusiasmo de JK pela Operação Nordeste tudo teria sido muito mais difícil.

6Depoimento de Francisco de Oliveira para o filme “O longo amanhecer. Cinebiografiade Celso Furtado”, de José Mariani. Rio de Janeiro, Andaluz, 2006.

Rosa Freire d’Aguiar

Jornalista e tradutora

 

 

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