Paulo Solmucci, presidente da ABRASEL – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes

Quando era professora no histórico vilarejo mineiro do Serro, Maria Lúcia Clementino Nunes juntou os alunos, a maioria de famílias pobres, para o cultivo uma horta que melhorava a merenda escolar 

Dona Lucinha permanece entre nós como uma das mais influentes personalidades da cultura brasileira. Ela revelou ao Brasil inteiro as raízes históricas da comida seca dos tropeiros e da comida molhada das fazendas, remontando ao século XVIII. São dezenas de pratos que seus restaurantes nos ofertam no extenso réchaud, em um bufê que abre as cortinas do passado aos tempos presentes, tendo como coadjuvante o aparador com licores e sobremesas.

Na verdade, a mais visível síntese material de sua obra está nos três restaurantes Dona Lucinha, sendo dois em Belo Horizonte e um em São Paulo. É como se fossem três rios correndo em paralelo, cada um deles formado a partir de incontáveis afluentes pouco perceptíveis. A vida e a obra de Dona Lucinha estão muito além da nossa compreensão imediata, porque são intangíveis. Os restaurantes são a materialização de um conceito existencial. É um pouco disso que quero falar neste artigo.

Maria Lúcia Clementina Nunes faleceu em Belo Horizonte na última terça-feira (9 de abril), aos 86 anos, quando fazia suas costumeiras orações matinais. Eis que, subitamente, foi acometida de um infarto relâmpago. A sua santa protetora, Nossa Senhora do Rosário, levou-a serenamente.

Começamos esta pequena narrativa pelo seguinte: desde 1990, Dona Lucinha tornou-se sucesso nacional como empresária do setor da alimentação fora do lar. Quanto a isso, ninguém tem a menor dúvida. O que às vezes a gente pode não se dar conta é de que os seus três maravilhosos restaurantes são, vamos dizer assim, a consequência de uma obra muito mais vasta e impactante, que se estende bem além dos que os olhos podem ver e as mãos ousam tocar.

As várias dimensões de um propósito edificante

É esta a reflexão que devemos fazer, reconhecendo que Dona Lucinha protagonizou uma guinada altamente positiva na cultura brasileira, em várias dimensões. Mais do que desvendar e colocar à disposição do país inteiro a cozinha nascida no ciclo do ouro e do diamante, ela comprovou que esta nação pode se refazer em uma dimensão muito mais humana, solidária, próspera e bela do que a que foi até agora desenhada no curso de uma história de cinco séculos.

Dona Lucinha nasceu em 21 de novembro de 1932, no Serro. Foi professora primária. Desde menina, atentava-se em escutar as vivências das gentes mais simples. Ouvia relatos de negros nascidos na escravidão, como Maria Luciana, a quem chamava de “vovó Luciana’. Participava dos encontros comunitários, como os das celebrações de Nossa Senhora do Rosário, organizadas pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a Associação dos Congados de Nossa Senhora do Rosário.

Diga-se, de passagem, que a Festa do Rosário é uma profusão de cores, ritmos, batuques, danças, cânticos e estandartes que remetem aos índios e à escravidão africana no Brasil, bem como às travessias dos mares e às batalhas entre cristãos e mouros. As ruas do Serro ficam tomadas de gente de todas as feições humanas e idades, sem que haja uma aglutinação excessiva e sufocante, com os cortejos fluindo, harmoniosamente, no compasso das percussões e dos cânticos.

A menina cresceu dialogando com os seus concidadãos. Coletava receitas orais, transportando-as para a escrita. Memorizava estórias e histórias pregressas. Quando se tornou professora, instituiu uma horta na escola, convocando os alunos ao aprendizado de plantar e colher. O que se produzia era utilizado na merenda escolar. Um mundo rural, coalhado de uma servidão sol a sol, em que cada detalhe saído do mato era observado, porque com a taquara se faziam os balaio e as peneiras, e das ervas (marcela, losna, arnica, bolda, erva doce) preparavam-se remédios. O ora-pro-nóbis ou urucum iam para as panelas.

A serenidade e autencidade dos sábios

Uma intelectual? Não. Uma mulher de alta cultura? Também não. Afinal, quem foi Dona Lucinha? Pois, então. Ela pertence à esfera dos sábios. Serena, ativa, simples, autêntica, coração aberto aos convívios. Incansável, solidária, de uma inteligência rara. Desde o berço, nela estruturou-se um ser humano com inesgotável sede de conhecimento. Lia o que lhe interessava, até mesmo as obras do historiador, antropólogo e jornalista Luís da Câmara Cascudo (1898/1986), que se dedicou a estudar a história e o comportamento de determinados grupos sociais (como o dos índios e dos descendentes de escravos africanos), o folclore e a alimentação no Brasil.

Em tempo integral, era uma observadora espontânea, que naturalmente foi modelando uma visão de conjunto a partir de seu microuniverso. Com dedicação, ela fez crescer a sua inteligência, canalizando-a tanto para os seus empreendimentos quanto para as relações com a comunidade. Dona Lucinha passou a ser considerada pelos mais influentes interlocutores dos segmentos educacionais, culturais, esportivos ou empresariais. Com essa chancela, conseguiu atingir certo grau de popularidade junto às audiências mais qualificadas.

Em 2015, sua obra tornou-se enredo da Acadêmicos do Salgueiro, com o tema “Do fundo do quintal, saberes e sabores na Sapucaí”. A escola ficou em segundo lugar; a Beija-Flor em primeiro. Um trecho do samba: “O ouro desperta ambição/Da fome nasce a criatividade/O branco o negro e seus costumes trazendo mais variedade/Um elo em comunhão/E a culinária virou arte e tradição”.

Desde que inaugurou o primeiro restaurante na capital mineira, em 1990, Dona Lucinha não cessou de percorrer o país, proferindo palestras e participando de festivais gastronômicos. Uma parcela das personalidades mundiais que visitavam o Brasil ia ao seu restaurante de São Paulo ou a um dos dois restaurantes de Belo Horizonte. Entre as renomadas figuras estavam, por exemplo, ex-presidente português Mario Soares e o piloto alemão Michael Schumacher. Quando ela lançou o livro “História da Arte da Cozinha Mineira”, escrito a quatro mãos com a filha Márcia Clementino Nunes, o apresentador Fausto fez um destacado elogio no seu programa dominical da Globo.

A estrela-guia de um país melhor para empreender e viver

Ela parecia seguir uma das máximas de Leon Tolstoi: se queres ser universal, canta tua aldeia. Dos anos 1990 em diante, Dona Lucinha frequentemente saía do Serro, mas o Serro jamais saía dela. Assemelha-se então à relação que Juscelino Kubitschek tinha com Diamantina. Era amiga do escritor Oswaldo França Júnior, autor do livro ‘Jorge, um brasileiro’, que inspirou a série ‘Carga Pesada’, da Globo, em que se sucediam as aventuras de dois caminhoneiros, interpretados pelos atores Antônio Fagundes e Stênio Garcia. O escritor morreu aos 53 anos de idade, em um acidente de carro, quando regressava de João Monlevade, onde tinha feito uma palestra sobre literatura.

Dona Lucinha instalou na varanda do seu restaurante de Belo Horizonte, localizado na Rua Padre Odorico (na divisa entre a Savassi e o bairro São Paulo), um nicho em memória do escritor, denominado ‘Cantinho do França’, com o retrato dele dependurado na parede e os livros de sua autoria sobre uma mesa. O verdadeiro empresário do setor de bares, restaurantes e estabelecimentos correlatos é assim. Ele o tempo todo está atento aos seus negócios, sim. Mas, simultaneamente, não perde de vista o entorno, a vizinhança a comunidade, os laços afetivos. Está com os dois pés na transação comercial e, com os mesmos dois pés nas relações sociais. É duplamente transacional e relacional.

Cabe-nos cuidar da herança que ela nos deixou, buscando-se ampliar esse legado. Dona Lucinha alargou a visão dos brasileiros para a imensa e exuberante cozinha mineira, de origem colonial. E com isso provocou o despertar das cozinhas regionais de todo o país. Colocou prestígio no que antes era desdenhado. Depois dela, vários restaurantes da cozinha mineira de raiz abriram as portas.

Uma mulher iluminada de inteligência, sensibilidade, vigor e mente arejada, que se manteve calma e confiante até à morte, sempre de mãos dadas com nossa Senhora do Rosário. Assim encerrou o seu livro: “Ela é santa de minha devoção e de quase toda a gente de Minas. Em todos os momentos da minha vida, os mais difíceis e os mais belos, sinto-a comigo, atendendo ao meu chamado”.

Dona Lucinha é agora uma estrela-guia, de mãos dadas com a sua santa de devoção, das esferas celestes inspirando-nos na caminhada que temos adiante de nós. Deixou ao alcance de nossa convivência diária o marido José Marcílio de Moura, onze filhos e 25 netos. À sua família, o setor brasileiro da alimentação fora do lar, que soma um milhão de estabelecimentos, diz presente. Temos muito a contribuir para a construção de um país melhor para se viver e empreender se formos fieis aos ensinamentos de Dona Lucinha, filha do Serro, luz que clareia nossos caminhos escuros

 

 

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