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Por: Olavo Romano
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O título, entre aspas, é de Sebastião Verly, amigo querido, sempre atento e generoso, que repassou à multidão de seus amigos o convite para a reunião em que Celso Adolfo e eu dialogaríamos com a platéia sobre a nossa cultura popular, a Minas rural, herança que teima em se manter nos aglomerados urbanos de um mundo inundado pela tecnologia. Wilmar Silva, poeta que há quase dez anos mantém o programa ativo, começou em tom combatente, lendo Darcy Ribeiro, Rolando Boldrin e Ferreira Gullar, que estivera presente duas semanas antes.

Violão em punho, Celso foi cantando, foi cantando, foi cantando… e logo tudo se acalmou. Então, a acolhedora sala da “Casa UNA”, no histórico solar de Afonso Pena encravado no coração de Belo Horizonte, transmutou-se numa cozinha de fazenda, o silêncio intenso fazendo fundo para o visitante que canta e toca.

O tom arrebatado com que o sarau se iniciara lembrou-me o professor Bethamio, nas aulas de geografia do “Colégio Estadual”, risco de Niemeyer ainda cheirando a tinta fresca. Contava do baiano, bêbado de cachaça e poesia, bradando versos do Navio Negreiro na madrugada de Salvador: “Tinir de ferros…estalar de açoites. Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar”. A voz do guarda soa mais alto: “Teje preso!”. O poeta clama: “A praça é do povo, como o céu é do condor”. Vencido, o guarda decreta instantâneo habeas corpus: “Teje solto!”.

Entrei pela porta da cozinha, com meus primeiros mestres, anônimos, analfabetos ou quase. Insuperáveis na leitura do mundo e da vida, põem sentido em tudo, brincam com enigmas, adivinham mudanças do tempo anunciadas no sol e na lua, na proximidade dos círculos em volta. O vôo dos pássaros, a altura dos ninhos pendurados à margem do rio, o barulho da cachoeira noticiando ar prenhe de umidade, chuva chegando, criadeira, tudo é informação para quem sabe ver. Um diretor da Inconfidência certa vez me impeliu a contar caso na “Onda Rural”, com uma urgência indiscutível: “Nesse tempo de chuva, o rádio pega looonnnge…”

Há mais de quarenta anos, um especialista do Banco Mundial, depois de discutir estratégias para atrair e manter as crianças na escola, me segredou, quase subversivo: “Você já reparou que não existe analfabeto oral?”.

Num desfile puxado por Noel (“O samba não se aprende no colégio”), entraram Paulinho da Viola (“As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”), Manuelzão, informando a um estudante onde era sua casa (“Ultimamente eu tou morando é debaixo desse chapelinho”), Henrique Mateus, lá no Quebra Cangalha, contando histórias de instigantes palavras (“Era um urco de home, um fazendeiro imensio de rico que vivia num palacete invesive”). Enigmático, perguntava o que viemos fazer neste mundo. Sem resposta, e ensinava, maroto: “Buscar uma muda de roupa – a gente nasce pelado e morre vestido”.

Tia Onofra, mulata, baixinha, atarracada, que catava papel pra vender “na rua das comadre”, orgulhava-se do filho Sérgio, que “sabia tudo que era inteligência, até avião”. Um dia, voltando para casa depois de um temporal, encontrou seu barraco destruído (“Cachorro miava que nem gato. Tava tudo no chão, meu fio; em pé só ficou os arvoredo”). Pra terminar, uma menina – negra, pobre e analfabeta – conta sua peleja para aprender música: (“O mestre falando e eu lá, de olho arregalado, pondo sentido em tudo: ‘o bemol abaixa meio tom, o sustenido eleva meio tom’. Até eu saber o que era eleva!?”). Adorava a solfa, fusas e semifusas, concheias e semicolcheias, queria chegar longe. Mas mãe, nos rigores da vida, vergada por pesados preconceitos, chamou a filha no canto e falou, sem medir palavras: “Esse negócio de música é muito bonito, mas não dá camisa a ninguém. Mulher, ainda mais preta e pobre, tem que aprender é a lavar, passar e cozinhar, senão não arruma emprego”. A menina desistiu do sonho, mas não esqueceu o ponto a que chegou no velho “ABC Musical” das aulas de canto orfeônico: “Estudei até a síncope, que é uma lição antes das três quiálteras”. 

É hora de pagar a Celso Adolfo, na presença de numerosas testemunhas, promessa feita no São João de Caruaru, onde estivemos a convite da Fiat: o trava-língua do Otávio, conhecido por Tatá, e sua mulher, Caetana, que o povo chamava de Tatano.

Uma pessoa, batendo palmas, grita lá de fora:

– O Tatá tá?

– Não. O Tatá num tá.

– E Tatano, tá?

– Tatano tá.

Satisfeita, a pessoa diz:

– O Tatá num tano, mas a Tatano tano, é o mesmo que o Tatá tá…

Voz e violão entoados, Celso volta, agora com as gemas de seu garimpo nas quadras de Sagarana: Ralando Coco, Mariquinha e Faquinha Quicé, título curiosamente redundante, pois “quicé” já significa faquinha velha, até mesmo sem cabo. De quebra, combinada com André, dá nome a três distritos mineiros, um dos quais abrigou Manuelzão, meu querido Mano Velho, durante o último período de sua longa vida.

Foi então a vez de Arnaldo Godoy dirigindo numa de praia na Bahia, onde o único guarda do lugar havia implicado com seus sobrinhos, um dos quais co-pilotava o tio no caminho do açougue. Diante da insistência do policial para ver sua carteira, Arnaldo explica: “Em Minas, ainda não dão carteira para cegos”.

Entusiasmado, acabou desistindo de um compromisso com a comunidade de Santa Tereza “porque a prosa tava tomando um rumo muito bom”, como assinalou depois nosso Sebastião Verly, verdadeiro Pero Vaz de Caminha daquela meio amalucada e muito feliz expedição. Mas era hora “de ir mexendo areia…”

Então, a acolhedora sala da “Casa UNA”, no histórico solar de Afonso Pena encravado no coração de Belo Horizonte, transmutou-se numa cozinha de fazenda…

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