*Por Olavo Romano

Homem bom de garfo feito Sô  Mundico Ribeiro, nem por encomenda.

Uns lembram dele batendo um prato fundo de melado. Outro vinha com o caso da carne.  Com essa fama toda, foi um espanto ele não tugir nem mugir quando chamaram pro almoço.

– O que será que deu no seu pai hoje, hein, Margarete? – indagou Sá Esméria, intrigada. – Todo dia, essa hora, ele rabeaia o fogão atrás de comida.

– E ranzinzando que tá atrasado, que isso, que aquilo.

Deram com o velho na cama, estrebuchando de dor. De manhã cedo, tinha clamado de um incômodo na barriga, boca amargando. Depois, queixou de arroto choco. Agora estava ali, empanzinado a não poder mais.

Vendo que ralhar não adiantava, Dona Esméria veio com purgante. Melhor era lavagem, mas Mundico, com a homência ofendida, ia botar a casa abaixo só de ouvir falar.

Na volta do dia, a muito custo, o purgante ameaçou fazer efeito, mas não deu em nada. Pior foi a febre alta, que não havia meio de ceder.

O dia acabou, passaram a noite em claro numa labuta sem fim: compressa de água fria, álcool, sinapismo, semicúpio, emplasto, reza, promessa, simpatia….  Tudo pra nada.

De manhãzinha, Dona Esméria sentenciou: “O Mundico não vai morrer à míngua nesse fim de mundo, juro por tudo o que há de mais sagrado”.

– O recurso é fazer um portador pra Santana, informar na farmácia e voltar com remédio – emendou Geraldo, marido de Margarete.

– E há de ser voando – decretou a fazendeira.

No galope o portador foi, no galope ele voltou.  Trouxe uma caixa de supositórios, mais fácil de aplicar do que o cristel, a lavagem intestinal.

Mesmo o supositório foi a poder de muita conversa, a patroa engambelando, que que é isso meu velho, é pro seu bem, deixa de ser niquento. Geraldo, genro e sobrinho, ficou incumbido da tarefa. No jeito e no muque, venceu a arrelia do sogro, que chiava, retorcia, gemia e esbravejava, xingando  escabrosos palavrões. Mas o caso não era pra brincadeira.

Passaram a tarde, uma segunda noite na maior peleja, sem resultado. Quando o galo cantou a terceira vez, estava tudo preparado. Depois de muita discussão  – carro  de boi dava muito baque, cadeira não dava pega nem segurança – deitaram Sô  Mudico num catre, quatro caboclos bem dobrados ombrando, e a procissãozinha madrugou, aproveitando a fresca da manhã. A patroa, boa cavaleira, acompanhava montada no Soberbo.

Parecendo um molambo, o velho fazendeiro não dava fé de nada – só um gemido fraco e esticado, um lamento de cortar o coração.  Será que ele aguenta, sussurrava um; Deus permita, respondia o companheiro, aflito e descrente.

Queimando em febre, barriga que nem um tambor, Mundico era um bagaço quanto entrou no arraial. O povo chegava na janela, parava na rua, admirado. Cochichavam, davam palpite, faziam o sinal da cruz. Um bobo acompanhou o cortejo, resmungando e batendo as mãos, dois vira latas entraram na fila. Quando abriram a casa da família, Tonico Farmacêutico entrou junto. Tomou pulso, tirou  pressão, apalpou a barriga, botou termômetro, todo mundo numa aflição danada. Curiosos iam aparecendo, pescoço esticado pra acompanhar. De repente, o alvoroço: “Tá fazendo termo, coitado. Deus tenha piedade da alma dele…” – falou a voz esganiçada de uma mulher franzina.

Trouxeram vela, crucifixo, água benta, começaram a rezar, com alto fervor, a “Oração da Boa Morte”. Dona Esméria lançou um olhar triste para o quase defunto e disse, com voz de choro e arrependimento:

– Se soubesse, não precisava ter humilhado meu velho tanto.

Mundico esbugalhou os olhos, mexeu os lábios, tentando balbuciar alguma coisa. Interromperam a reza: “Espera. Quem sabe é um último pedido?”

O moribundo, frouxo de tanto supositório, olhou para a vela, firmou as vistas na chama e pediu, apavorado:

– Ah, gente, pelo amor de Deus: acesa não!

 

 

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