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Por: Olavo Romano

 

Em janeiro de 2008, quando minha mãe fez 90 anos, Tia Tetão, sua irmã mais velha, veio de Goiás para o aniversário. Tinha acabado de ficar viúva, estava muito triste e disse que só viera porque as duas foram sempre muito unidas e ela não podia faltar. Agradeci por seu empenho, ficamos longo tempo em silêncio, de mãos dadas. Então, ela respirou fundo, deixou passar o desânimo falou : “Ultimamente, tem havido aqui muitas senhoras centenárias”. E emendou: “Se eu não morasse tão longe, era capaz de vir comemorar o meu aqui”.

Contei-lhe que a mais recente das duas centenárias de então, indagada pelo repórter por que achava que tinha vivido tanto, respondeu: “Porque eu nunca casei”. Lembrada de que a colega do ano anterior tinha netos, bisnetos e tataranetos, não vacilou: “Então é porque eu gosto de dançar”.

Mês passado, seis anos depois, Tia Tetão, agora com 97, veio para os 96 de minha mãe. Feliz com a novidade, contei para Romélia, que ajuda na lida diária aqui em casa e executa um trivial de fazer inveja: “A irmã mais velha de minha mãe, de 97 anos, cabelo pretinho, completamente lúcida, está vindo de Goiás para o aniversário. De carro!”, completei, viajando na maionese. Espantada, ela perguntou: “Dirigindo?”

Com sua chegada, reuniram-se na casa de minha mãe os tios Cajuca, solteiro apesar dos olhos verdes que tanto atraíram as moças; Alcino, viúvo, chegado de São João D’el Rei com uma lista de dez doenças, recitadas de cara boa, e Zoé, bonitos olhos azuis iluminando o rosto sereno apesar dos muitos desafios da vida, sem falar na alegre romaria de sobrinhos, entre eles a descendência dos falecidos tios Afonso e Amanda.

O aniversário, no meio da semana, foi comemorado com um almoço em casa. Mas acabou gerando animado encontro de todos os descendentes de meus avós maternos no fim de semana seguinte.

No ritual dos tempos modernos, com comida e bebida terceirizados, sem ter de matar porco, fazer linguiça, assar biscoito, preparar sobremesa, o mutirão foi para organizar a festa, juntar fotos e relatos das famílias todas, cada qual dando sua contribuição.

Da comissão central partiam seguidos e-mails dando conta do andamento dos trabalhos, pedindo ajuda para pontos específicos, informando o custo estimado e indicando banco e conta para depósito, cada um se identificando com os centavos correspondentes à sua posição na fila da família – no nosso caso, de um a quinze centavos.

O apanhado de minhas lembranças, costurado à história da família, recebeu valiosa contribuição da Mamãe, que voltou à primeira imagem registrada em sua mente de menina: a mudança para a casa nova da Serra de Baixo, com os irmãos Afonso e José (Cajuca), ainda bebê, e a correria pela sala assoalhada, o eco dos passos reboando. A pequena Tetão permaneceu com os avós, de cuja companhia só saiu para se casar. Daí, talvez, a constante disponibilidade para estar com irmãos, que, por sua vez, nunca deixaram para ir ao seu encontro.

Relembrando antigos serões na fazenda da Serra, lugar mágico na lembrança de todos nós, como se viu depois, durante a festa, busquei letras de velhas canções que encantaram os primeiros anos de minha infância. Do baú do Google, tirei preciosidades como Pombo Correio (“Soltei meu primeiro pombo correio/ com uma carta para a mulher que me abandonou/ Soltei o segundo, o terceiro, o meu pombal terminou/ Ela não veio, nem o pombo voltou”…) e Pisando Corações (Quando eu te vi naquela noite enluarada/Minha impressão era que fosses uma fada/Fugida do seu reinado, vinda de um mundo encantado…”/

Curioso com o paralelismo de Noite Cheia de Estrelas, que a gente ouvia, fascinado, na vitrolinha da fazenda Ponte de Pedra (“Noite alta, céu risonho, a quietude é quase um sonho/O luar cai sobre a mata qual uma chuva de prata de raríssimo esplendor/ Só tu dormes, não escutas o teu cantor revelando à lua airosa a história dolorosa desse amor”) e Última Estrofe (Lua… Vinha perto a madrugada quando em ânsias minha amada nos meus braços desmaiou/E o beijo do pecado o teu véu estrelejado] a luzir glorificou/Lua… Hoje eu vivo sem carinho, ao relento, tão sozinho na esperança mais atroz/De que cantando em noite linda essa ingrata volte ainda escutando a minha voz”, percebi, setenta anos depois, o que não podia saber então: ambas as letras são de Cândido das Neves, inspirado poeta que abastecia os cantores mais populares de então.

No clima de evocação e afetividade que se estabeleceu, soltei ao microfone o “Pombo Correio”, que tio Cajuca ouviu atentamente, com certeza se lembrando os tempos de sua juventude, quando ele cantava animadamente, se acompanhando ao violão.

Já O destino desfolhou, que tentamos interpretar fazendo leitura labial do que tia Tetão ia cantando em sua mesa, valeu mais pela intenção, pois acabou ficando pela metade, despencado na memória de cada um.

No dia seguinte, Mamãe, Tia Tetão e Tio Alcino, de mãos dadas na poltrona da sala, eu disse a Tia Tetão que agora faltavam dois anos e pouco para o seu centenário,podíamos ir pensando nos preparativos. Com seu jeito contido e atento, olhos vivos emoldurados pelos cabelos surpreendentemente negros, não disse que sim nem que não, mas deu um sorrisinho em que vi anuência e esperança.

Na sala, em cujas paredes os ancestrais vigiavam, emoldurados em fotografias, os mais novos foram chegando, cada qual lembrando alguma coisa da festa, puxando pequenas alegrias, lembrando inevitáveis desencontros no afã de fazer muito em pouco tempo, tentando conciliar múltiplas sugestões, acolher o que pudesse sem magoar ninguém.

Alguém disse: “Convivência é muito difícil!”.

Minha mãe, do alto dos seus noventa e seis anos recém-inaugurados, testemunhou:

“Precisa muita prática”.

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