GUERRA RÚSSIA X UCRÂNIA
GUERRA RÚSSIA X UCRÂNIA
GUERRA RÚSSIA X UCRÂNIA

Quos Jupiter Vult Perdere Dementat Prius[1]

[1] “Aqueles que Júpiter deseja destruir, ele os enlouquece primeiro”

A intervenção da Rússia na guerra civil na Ucrânia e o subsequente enfrentamento entre este país e o Bloco do Poder Global, centralizado em Washington, representam, sem dúvida alguma, um divisor de águas na história contemporânea, colocando em cheque o mundo unipolar que emergiu com o desmantelamento da União Soviética por Boris Yeltsin depois do golpe de 4 de outubro de 1993. Apesar da avalanche diária de Fake News vomitadas pela grande mídia, num contexto de exclusão das agências de notícias russas, elogio da loucura, alimentação aberta do ódio e glorificação do nazismo, autorizadas pelas redes sociais, é possível analisar friamente o desenrolar dos acontecimentos e retirar as conclusões necessárias ao nível geopolítico e econômico-financeiro.

A Guerra da Ucrânia teve início em abril de 2014, quando as forças da Guarda Nacional da Ucrânia, que incorporara batalhões neonazistas, como o Aidar e o Azov, cujas bandeiras e insígnias espelham o Wolfsangel da 2ª Divisão Panzer SS Das Reich, assim como membros do Serviço de Segurança da Ucrânia, mercenários nacionais que retornavam da Síria e estrangeiros atacaram as milícias da República Popular de Donetsk (RPD) e da República Popular de Lugansk (RPL). A exemplo do que ocorreu na Crimeia, essas autoproclamadas repúblicas resultaram de um levante popular contra o governo estabelecido após a “Revolução de Maidan” (ou Euromaidan), que, tendo início com protestos pacíficos contra a decisão de 21 de novembro de 2013 do presidente eleito, Viktor Yanukovych, de suspender, devido a dificuldades financeiras, as negociações para ingresso na União Europeia (UE), transformou-se em sangrento coup d’etat, em regime change patrocinado por Washington, como muito bem descreve Moniz Bandeira em seu livro A Desordem Internacional (2017). Na mesma noite de 21 para 22 de fevereiro de 2014 em que Yanukovych fugiu do país, o presidente Putin ordenou que as forças russas posicionadas na base de Sebastopol, arrendada à Ucrânia, bloqueassem a entrada de “ativistas” na Península. Na sequência, a República Autônoma da Crimeia e o Conselho de Sebastopol, após a realização de plebiscito, solicitaram a sua reintegração à Rússia, revertendo decisão de Khrushchev de 1954 de transferi-las à Ucrânia. O retorno da Crimeia à mãe Rússia inspirou os líderes dos oblasts de Donetsk e Lugansk, que proclamaram a sua independência e, em seguida, solicitaram a sua integração à Rússia.

Com a recusa de Putin de fazê-lo, Kiev enviou suas tropas para suprimir o levante; porém, Marte não sorriu para a Guarda Nacional, que, embora tenha sido bem sucedida a princípio, terminaram detida pelas milícias da Novorossiya, que puderam contar com o discreto apoio de Moscou, que, além de treinar e fornecer armas e equipamentos, enviou de 6.000 a 6.500 combatentes, além de instrutores e oficiais para guiá-las. Enquanto proliferavam as deserções no seio das forças ucranianas, as tropas revolucionárias contra-atacaram, e, em uma série de batalhas, das quais as mais famosas foram as de Ilovaisk e Debaltseve, derrotaram-nas. Isto não deixou ao novo presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, outra alternativa que assinar, juntamente com as lideranças da Rússia, RPD e RPL, o Protocolo de Minsk, sob os auspícios da Alemanha, França e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Segundo o mesmo, que se tornou lei internacional pela Resolução 2202 Conselho de Segurança da ONU de 12 de fevereiro de 2015, os combates cessariam imediatamente, as armas pesadas seriam retiradas da linha de contato entre as forças inimigas e Kiev negociaria diretamente com as repúblicas separatistas, que aceitaram se reunir a uma Ucrânia federada, mas dispondo de grande autonomia.

 

Moldavia
Moldavia

É claro que, dada a composição das forças sociais dominantes na Ucrânia e as pressões de Washington sobre Berlin e Paris, os Acordos de Minsk nunca foram cumpridos, enquanto a Ucrânia recebia equipamento bélico gratuito, instrutores militares da OTAN para treinar as suas forças armadas, inclusive os batalhões neonazistas, e recursos para a contratação de mercenários. Paralelamente, os políticos e a grande imprensa ocidental fechavam descaradamente os olhos para os crimes de guerra e a atuação dos esquadrões de morte na Ucrânia, o amordaçamento da imprensa, o banimento do principal partido político do país e a prisão dos líderes oposicionistas por Kiev, que manteve inalterada sua política discriminatória em relação aos residentes de língua russa, romena e de outras nacionalidades. Aliás, não foi sem motivo que o professor da Universidade de Chicago, John J. Mearsheimer, em vídeo no youtube, explicou Why is Ukraine the West’s Fault, assim como, em outros vídeos, demonstrou que a “invasão da Ucrânia” pela Rússia foi um resultado inevitável da expansão da OTAN.

O prof. Mearsheimer não pôde perceber, contudo, que, com a “anexação” da Crimeia pela Rússia, teve início a Guerra Hegemônica de nossos tempos. Guerras hegemônicas são aquelas que modificam a liderança, hierarquia e estrutura do sistema internacional, ocorrendo a partir de uma mudança na distribuição de poder dentro do mesmo resultante do desenvolvimento econômico, tecnológico ou de revoluções sociais de grande alcance. Nesta perspectiva, a primeira guerra hegemônica teria abrangido as Guerras Anglo-Holandesas de 1652 a 1784, que não desembocaram em qualquer resultado conclusivo; as Guerras Napoleônicas de 1803 a 1815, das quais a Inglaterra emergiu como hegemon efetivo; as duas Guerras Mundiais do século XX, que geraram o mundo bipolar do pós-Guerra; e a Guerra Fria, que seria terminada abruptamente pelo golpe de Yeltsin.

O Bloco de Poder respondeu à decisão de Putin com pesadas sanções à Rússia, incluindo o congelamento de ativos financeiros do país e a restrição de exportações de alguns produtos de alta tecnologia para o mesmo, além de ter a União Europeia-UE proibido a importação de vários produtos russos, num contexto de queda do preço do petróleo, com o rebaixamento do rating do país, fuga de capitais, redução das emissões de títulos do governo e do valor em bolsa das suas empresas. Todavia, o PIB da Rússia caiu menos de 2% em 2014, tendo voltado a crescer a partir de 2017, num cenário de elevados superávits fiscais, destinados a reduzir a sua dívida externa, e aumento expressivo dos superávits na conta de transações correntes, com a consequente acumulação de reservas internacionais, principalmente em ouro. Além disso, a Rússia impôs contra sanções, cortando as importações da UE, e encetou vigoroso processo de substituição de importações, inclusive nos setores de alta tecnologia, com a ampliação e modernização do seu complexo militar industrial.

Certamente que a vitória de Trump nas eleições de 2016 trouxe certo alívio para Moscou, visto ter o novo presidente americano avaliado corretamente que o maior adversário de Washington era a China, que já assumira a posição de primeira potência econômica mundial, o que não se tornara de domínio público devido à negativa da mídia em considerar os efeitos da valorização da moeda norte americana em relação ao Yuan renmimbi sobre o PIB em dólares. Na verdade, desde pelo menos 1980 que a participação dos Estados Unidos e seus principais aliados no PIB global, valorado pela PPP, tem caído de forma acelerada, face ao fortalecimento dos “países em desenvolvimento”, particularmente da China, cuja participação no PIB global em PPP ultrapassou a dos EUA em 1914, – alcançando 17,3% em 2019, contra 15,8% dos EUA. Isto sem considerar que a participação dos setores não produtivos – intermediação financeira, arrendamento de bens móveis e imóveis e comércio – no PIB dos países do Grupo dos 7 e da UE é significativamente maior do que nos “países em desenvolvimento”, inclusive na China. Como consequência da implementação das equivocadas políticas neoliberais pelos países ocidentais, já em 2015, como aponta o autor deste artigo em seu livro “A Nova Crise da Hegemonia Americana” (2019), a China “comunista” se havia tornado a “oficina do Mundo”, respondendo por 25,6% do PIB a custo de fatores da indústria mundial e mais, portanto do que a do conjunto dos países do G-7, que detinham 24,9%.

A eleição de “Joe” Biden Jr. pôs fim ao período de relativa trégua geoestratégica da Rússia, com o retorno dos warmongers vinculados ao ex-presidente Obama e a Hilary Clinton, dispostos a retomar as diretrizes do Defense Planning Guidance, rascunhado em 1990 pelos neocons, que, conforme assinala Moniz Bandeira, “estabelecia que o objetivo estratégico dos Estados Unidos, como ‘superpotência unilateral permanente’, consistia em ganhar controle de toda a Eurásia (Europa e Ásia) e encontrar os meios ‘para integrar as ‘novas democracias’ do antigo bloco soviético no sistema liderado pelos EUA’”.

O problema, contudo, é que Putin aproveitara bem a trégua, tornando a Rússia não apenas o mais poderoso e moderno arsenal nuclear do planeta, mas, como demonstrado por Andrei Martyanov, em seu livro Losing Military Supremacy (2018), em detentora das mais avançadas armas convencionais em praticamente todos os níveis. Isto colocou uma guerra aberta na Ucrânia fora do alcance da OTAN, mas não evitou que o governo americano montasse uma armadilha inescapável para Putin: enquanto se mantinham abertos os canais diplomáticos, Biden reforçou as forças armadas ucranianas, sabedor que isso levaria a uma escalada contra as repúblicas separatistas, tornando inevitável a intervenção da Rússia, que, então, seria acusada de agressora, abrindo caminho para a imposição de sanções devastadoras, destinadas a enfraquecer o país.

E Moscou, de fato, mordeu a isca com dentes de aço, mas não o fez sem consciência de que se tratava de uma armadilhinha, como se tornou claro na reunião solene do Conselho de Segurança da Federação Russa de 21 de fevereiro deste ano. Tendo preparado o caminho através da exigência de que se dessem garantias absolutas de que a OTAN, além de não incorporar a Ucrânia, voltaria às suas fronteiras de 1990, Putin reconheceu a RPD e a RPL no dia 21 de fevereiro, abrindo caminho para o início da “operação especial” no dia 24, cujos limitados objetivos iniciais foram imediatamente ampliados devido à reação dos países ocidentais, tornando-se numa campanha destinada a neutralizar, desmilitarizar e desnazificar o país.

 

La guerra total
La guerra total

A reação do Collective West através da “Guerra Total” anunciada por Emmanuel Macron, que surpreendeu Moscou, envolveu, além do aumento do envio de armas para a Ucrânia: (i) o cancelamento do Nord Stream 2 – um dos objetivos fundamentais de Washington, que significaria reduzir a dependência da Alemanha do gás russo, aumentando, consequentemente, o espaço para o gás de xisto (shale gas) norte-americano, de alto custo, e reduzindo as receitas cambiais de Moscou –; (ii) a desconexão do sistema financeiro russo da SWIFT – Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication – através do qual os bancos transmitem as suas ordens de pagamento envolvendo a transferência de recursos entre si, o que dificultaria senão impossibilitaria a Rússia de efetuar e receber pagamentos internacionais; (iii) o sequestro das reservas cambiais nos países ocidentais, estimadas em US$ 350 bilhões, junto com a desconexão das operações com o Banco Central da Rússia (BCR); (iv) o veto à negociação de títulos públicos russos; (v) o fechamento do espaço aéreo às aeronaves russas; (vi) a proibição das exportações de produtos de alta tecnologia para o país e a decisão de empresas, como a Jaguar, Land Rover, General Motors, Volkswagen, Skoda, Porsche, Mazda e Honda, de suspenderam as exportações de seus veículos para o país; (vi) o fim das operações internacionais dos cartões de crédito de emissão dos bancos ocidentais, como Visa, Mastercard e American Express, para cidadãos e empresas russas; (vi) o “congelamento temporário” ou o término das operações de dezenas de corporações estrangeiras, como as petroleiras British Petroleum, ExxonMobil e Shell, empresas de telecomunicações e hardware e software de alta tecnologia, incluindo Google, Apple, Microsoft, Oracle, HP, Cisco e IBM, montadoras, como a Daimler Trucks, que suspendeu projetos conjuntos com a russa KamaAZ, a BMW, a Ford, a Hyundai, a Stellantis (anteriormente PSA Peugeot Citroen), a Renault e a Mitsubishi Motors, que anunciaram que suspenderiam as vendas e a produção de carros, e empresas de consumo, como IKEA, H&M, Nike e Adidas; e, mais importante do que tudo, (vi) o cancelamento da licença da Russian Today (RT) e da Sputnik, cuja audiência era crescente, de operar nesses países, tendo a Google, o Facebook e outras plataformas seguido o exemplo. Os EUA e a Austrália ainda proibiram a importação de petróleo e gás da Rússia, tendo a União Europeia afirmado que substituirá até fins deste ano 2/3 da importação de gás. De sobra, abriu-se espaço para a ampla guerra midiática, com a difusão de Fake News e do discurso do ódio contra os russos, particularmente contra Putin, um “criminoso de guerra”, como afirmou Biden.

Isto, contudo, não será o fim da história, pois, para começar, os países mais por elas afetados parecem ser os membros da UE, em especial a Alemanha, que, contudo, continuará tendo acesso ao gás russo através das vias tradicionais e do Turkstream. A Rússia – que exporta cerca de 8 milhões de barris de petróleo por dia, sendo fornecedora da China, através de um oleoduto de 4,7 mil km, e de gás, através do gasoduto “Força da Sibéria” (Sila Sibiri) –, deverá ser menos afetada, até porque o corte das importações de gás e petróleo por parte da União Europeia a curto e mesmo médio prazos parecem sonhos de uma noite de verão, assim como a tentativa de ressuscitar a curto prazo as exportações de petróleo pela Venezuela e pelo Irã, países que duramente atingidos pelas sanções de Washington.

Fechamento do espac?o ae?reo russo a?s aeronaves de 36 pai?ses
Fechamento do espac?o ae?reo russo a?s aeronaves de 36 pai?ses

De mais a mais, o fechamento do espaço aéreo russo às aeronaves de 36 países – medida retaliatória – tornará caríssimas as passagens de ida para ou vinda do extremo oriente, em viagens de mais de um dia de duração, causando enormes prejuízos às linhas aéreas desses países. Já a desconexão da SWIFT terá pouco significado, tendo em vista que Moscou criou em 2014 o System for Transfer of Financial Messages (SPFS), que se conecta ao Cross-Border Interbank Payment System (CIPS) – sistema chinês que não está sujeito a sanções. Mais do que tudo, alguns bancos russos não foram desconectados, de modo a permitir o pagamento das importações de gás e petróleo, entre outras, tendo instituições financeiras russas passado a emitir cartões ligando os sistemas MIR do país e UnionPay da China para efetuar pagamentos e saques de dinheiro no exterior

Quanto aos produtos eletrônicos, é preciso salientar que, se a defasagem russa é clara na área civil, na indústria a Rússia tem superioridade, o mesmo ocorrendo nos ramos de tecnologias eletrônicas de micro-ondas, tecnologias de virtualização em telecomunicações e transmissão de dados de alta velocidade com base em tecnologias DWDM. A defasagem russa é particularmente aguda em software e dispositivos portáteis, mas certamente que os fornecedores chineses, como Huawei, Tencent, Changhong Electronics, Skyworth Group, Meling e Xiaomi, entre outros, expandirão suas vendas para o país, que, contudo, experimentará carência de microchips, devido à impossibilidade de importar esse componente dos países ocidentais, assim como máquinas de litografia, cujos fornecedores estão proibidos de exportar inclusive para a China. O gigante asiático, contudo, já produz esse equipamento há alguns meses, sendo as máquinas chinesas capazes de produzir chips de 28 nm, o que atende ao grosso da demanda.

No que diz respeito à suspensão de investimentos e da operação de multinacionais na Rússia, a mesma abre enorme espaço para empresas nacionais, chinesas e hindus, ao mesmo tempo em que favorece o processo de substituição de importações em curso. Além disso, de acordo com o primeiro-ministro Mikhail Mishustin, o Kremlin está bloqueando a venda de ativos por investidores estrangeiros que estão abandonando o país, enquanto a Rosneft e outras empresas estão levantando capital na China e na Índia, que já são investidores minoritários em vários projetos, o que representa uma excelente oportunidade para os negócios russos. Isso sem considerar a possibilidade de completa nacionalização das empresas que anunciaram o fechamento de suas plantas ou a retirada do país, proposta, aliás, apresentada à Duma pelo Secretário do Conselho do Partido da Rússia Unida, Andrei Turchak. Na verdade, o presidente Putin determinou no dia 10 de março que as empresas estrangeiras que fechassem suas portas fossem transferidas para aqueles que “querem trabalhar”, tendo o governo russo alocado recursos do Fundo Nacional de Bem Estar para adquirir ativos desvalorizados das companhias estrangeiras.

Pode ser que sequestro das reservas cambiais russas (ato que fere o princípio das sovereign immunities), que eram de US$ 630,2 bilhões em fins de janeiro, tenha impactos negativos sobre a capacidade da Rússia de honrar seus pagamentos ao nível internacional, o que dependerá, é certo, de inúmeros fatores, inclusive do montante de reservas em bancos dos sequestradores. Entre as reservas russas, US$ 95,7 bilhões em depósitos estão em bancos centrais estrangeiros, no BIS e no FMI, US$ 57,3 bilhões em aplicações em instituições financeiras de outros países e US$ 132,2 em ouro (quase 2.300 toneladas). Isto significa que provavelmente, o sequestro possa ter abrangido cerca de US$ 150 bilhões, embora um montante muito maior – US$ 350 bilhões – tenha sido mencionado na imprensa. Mesmo nesta hipótese, mais de US$ 300 bilhões estariam à disposição da Rússia, que, por sinal, tem tido expressivos saldos em conta corrente e uma dívida externa de apenas US$ 40 bilhões, o que torna praticamente ineficaz a proibição de se negociar títulos públicos do país. Aliás, o governo russo tomou medidas para reduzir a perda de divisas, proibindo a remessa de mais do que US$ 10.000 para o exterior, o depósito de parte dos dividendos das corporações em contas fora do país exterior, tornou obrigatória a venda de 80% das receitas em divisas das companhias ao BCR. Coisa inteiramente diversa é a desconexão do BCR dos bancos centrais dos membros do Collective West, pois essa medida retira grande parte do poder da Rússia de defender a sua moeda, evitando a sua desvalorização, e a amplia sua flutuação. Não obstante, se a cotação do dólar saltou de 81,175 ? no dia23 de fevereiro para 150,119 ? em 7 de março, a mesma tinha caído para 105,479? em 19 do mesmo mês, talvez como resultado das medidas tomadas pela Rússia, em particular a sua conversibilidade do rublo em ouro a partir de 4 de março. Em contrapartida, também o preço do ouro aumentou de US$1.889,00 para US$ 1.921,49 por onça troy no mesmo período, depois de ter atingido o seu pico em US$ 2.052,60 no dia 8 de março, sugerindo que o dólar, cuja tendência à queda remonta à eclosão da crise das empresas dot.com em 2000, quando o preço do metal era de cerca de apenas US$ 285,00, também está sendo afetado de forma sensível.

Se, por outro lado, é verdade que os efeitos das sanções atuais sobre a economia russa possam resultar em uma recessão mais profunda do que a de 2014-2015, o aumento dos preços do petróleo, do gás, dos grãos e de outras commodities favorecerão o país, não obstante a esperada queda das exportações de petróleo e gás, que será pequena em razão da ausência de fornecedores substitutos para a Europa e mesmo para os EUA, e da negativa da Arábia Saudita de socorrer o Tio Sam, para não falar na ampliação das compras chinesas. Em 2021, 45% do gás consumido pelos países da UE veio da Rússia, assim como 25% das importações de petróleo. Particularmente dependentes são os países do Sul e Leste, como Letônia, Lituânia, Bulgária, Grécia, Áustria, Eslováquia, Suécia, Finlândia, Hungria e Polônia, que importam de 65% a 100% do total consumido desses produtos. Também a Alemanha e a Itália são muito dependentes, pois o primeiro adquire 49% do gás e 32% do petróleo da Rússia, enquanto o segundo 46% e 23% respectivamente. Devido ao esgotamento da capacidade produtiva dos países da OPEC e da Noruega, assim parece difícil substituir o petróleo russo, a menos que se acelere a suspensão das sanções contra o Irã – país aliado de Moscou, que colocou como condição para a assinatura de um novo acordo no âmbito do Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA) a não vinculação de qualquer sanção à Rússia ao comércio exterior do país. Já a substituição das importações de carvão russo (47%) pelos EUA por produto americano e/ou australiano parece mais fácil, embora signifique maiores custos de transporte. Quanto à substituição das importações de gás pela EU, trata-se de uma impossibilidade mesmo no médio prazo, dada a incapacidade da Noruega (16%) e da Argélia (8%) de fornecerem quantidades adicionais do produto, enquanto que a importação de shale gás dos EUA exigiria tempo e investimentos excessivos, para não falar nos custos do produto, o que inviabilizaria grande parte das empresas industriais europeias, principalmente da Alemanha. Por outro lado, até que a Venezuela concorde e consiga aumentar a sua produção, o caso dos Estados Unidos não parece muito diferente, pois não há outro substituto para o petróleo pesado da Rússia – que representa apenas 6% do total das exportações desse país – e as destilarias norte americanas não processam petróleo de menor densidade. Do lado da Rússia, é bom ressaltar que, mesmo um corte expressivo na quantidade exportada de petróleo não deverá causar qualquer redução do seu valor, em razão do expressivo aumento do preço do produto, não tendo o mesmo maior impacto, por conseguinte, nas finanças públicas do país, até porque, segundo consta, o “preço de corte” para o equilíbrio orçamentário russo seria de apenas US$ 69 por barril.

O pior é que a Rússia, embora certamente não vá cortar suas exportações de energia e grãos, pode muito bem reduzir ou mesmo proibir a venda para os países ocidentais de insumos importantes, como paládio, platina, potássio, vanádio, níquel, cobalto, alumínio, titânio, urânio e terras raras, o que teria efeitos reduzidos em suas receitas de exportação, mas consequências desastrosas para esses países. Registre-se que 46% do urânio consumido pelas 56 usinas nucleares norte americanas é importado da Rússia e de seus aliados, o Cazaquistão e o Uzbequistão, e a energia gerada através do urânio importado desses países representa cerca de 10% da eletricidade gerada nos EUA.

Por outro lado, as sanções anunciadas pelo Bloco do Poder ampliaram em muito as ondas de choque que se fizeram sentir já no segundo semestre do ano passado, com a elevação dos preços das commodites, aceleração inflacionária e queda das bolsas de valores mundo afora. Se o preço da gasolina nos Estados Unidos bate recordes, causando expressiva redução do poder aquisitivo das famílias e alimentando a inflação que já vinha se acelerando, o mesmo ocorre na Europa devido ao aumento dos custos da energia em geral, atingindo pesadamente as famílias e empresas, como nos casos das produtoras de aço, produtos químicos e de alimentos. Neste contexto, parece difícil evitar o mergulho na estagflação, principalmente no caso dos países europeus, que partilharão, assim, talvez de forma ainda mais forte, das agruras da economia russa. Aliás, a própria Liz Truss, Secretária de Relações Exteriores da Grã Bretanha, reconheceu em entrevista para a BBC em 27 de fevereiro que “lutar pela liberdade” na Ucrânia “tem um custo muito alto para nós”, assinalando que “[o]s horrendos aumentos do preço da energia não serão vistos como um preço que valha a pena pagar por ninguém”.

Europa
Europa

Como se não bastasse, os últimos acontecimentos deverão acelerar dramaticamente as transformações do sistema monetário internacional, assentando adicionalmente um duro golpe dólar. Para começar, o sistema integrado do SPFS-CIPS, que já conecta países da Eurásia, poderá incorporar outros países, inclusive aqueles sancionados, como Irã, Venezuela, Cuba, Nicarágua, Bolívia, Síria, Iraque, Líbano e Coréia do Norte. Além disso, deverá ocorrer a rápida inclusão de vários países ao sistema de compensações de pagamentos em moeda nacional estabelecido pelo BRICS, assim como a expansão do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas (CRA). A fuga do dólar, que já se verificava em fins do ano passado, devido à aceleração inflacionária, pode repetir o desastre da década de 1970, quando o mesmo quase perdeu o seu status de moeda de reserva, na esteira da elevação do preço do ouro. Se rublo já se tornou conversível em ouro e a moeda chinesa também o é, através do Shanghai Gold Exchange, muito provavelmente haverá uma forte migração para ativos da China, que está fora do conflito, com a consequente expansão da esfera do Yuan, que, aliás, também se tornou digital. Aliás, sintomática foi a disposição de Riad de acertar a venda de petróleo em yuans para a China, o que, caso se confirme, assinalaria um golpe devastador para os EUA, visto que o lastro do dólar – último baluarte do outrora todo poderoso Império Americano –tem sido a precificação do petróleo na moeda imperial.

Parece, portanto, que foi o Collective West que caiu na armadilha de Putin, permitindo coibir as ONGs alinhadas com os países ocidentais, eliminar os grupos liberais, assentar um golpe decisivo aos oligarcas, controlar ou eliminar a mídia ocidental que opera na Rússia e fazer avançar a nacionalização da sua economia, desmantelando o que resta do modelo neoliberal que tem inibido o desenvolvimento da mesma. Na verdade, Moscou implementou várias das medidas sugeridas pelo Ministro da Integração e Macroeconomia da Comissão Econômica da Eurásia, Sergei Glaziev, em seu famoso texto “Sanções e soberania” de 25 de fevereiro, destinadas a pôr termo às políticas neoliberais que ainda persistem no país, inclusive o fim da independência do Banco Central, que teria sido o principal responsável pela anemia da economia russa desde que Putin assumiu o poder. Faltaria somente eliminar com a independência do BCR, sob a presidência de Elvira Nabiullina, responsabilizado por deixar grande parte das reservas internacionais no país sob o alcance dos países ocidentais. Há, contudo, quem argua que também neste caso, Putin se mostrou arguto, deixando recursos disponíveis para, devidamente sequestrados, honrar o serviço da dívida externa do país e cobrir os ativos das empresas internacionais nacionalizadas. Isso sem falar no abalo da confiança dos investidores internacionais, particularmente dos países não alinhados com Washington, em manter ativos em dólar ou ao alcance do governo norte americano.

 

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