Pra Não Perder a Fome!
Pra Não Perder a Fome!
Pra Não Perder a Fome!

Sérgio Augusto Carvalho*

MERCADO GASTRONÔMICO

Os mestres da cozinha medieval pregavam a necessidade de que uma cozinha devia estar sempre com o chão limpo, lavado, esterilizado se possível.

 

Acho que uma cozinha limpa, não só o chão, é a primeira exigência que se deve fazer ao iniciarmos uma sessão de regabofes.

 

Mas tanto capricho assim, como queriam os senhores chefs da época da Renascença, é na realidade, um exagero. Eles pensavam naqueles descuidados cozinheiros que deixavam cair os bifes no chão, os pegavam e continuavam a viagem para a frigideira como se nada tivesse acontecido. Chão limpo, bifes sadios.

 

Gostaria de poder voltar no tempo e passar uma semana entre esses senhores que tornaram a gastronomia uma divindade venerável.

 

Ouço e leio historiadores de todas as línguas (traduzidas) derreterem seus casos sobre os artistas, cientistas, políticos e outros gênios de todas as épocas que eram fascinados pela arte culinária.

 

Da Vinci, Platão, Monet, Proust, Einstein, Newton, Rossini e outros mais nos chegam como outras coisas, menos como cozinheiros. E todos eram. E dos bons. Provável até que esculpir, pintar, filosofar, escrever, descobrir, calcular e tocar piano eram passatempos para esses senhores.

 

O ofício verdadeiro deles devia ser mesmo cozinhar.

 

Editores internacionais gastaram os tubos em décadas passadas (e gastam ainda) publicando livros sobre grandes figuras da humanidade em todos os tempos dando receitas e ensinando segredinhos culinários. A alquimia dos gênios nos trouxe longe demais.

 

Na verdade, as receitas originais foram todas adaptadas às fantasias modernas. Suas descobertas tornaram-se órfãs.

 

Quem descobriu que o minúsculo orgão de uma planta originaria da Índia, da família das iridáceas, poderia ser utilizado na cozinha como condimento, desde que 1.500 flores cedessem seus pistilos para se obter a magnífica quantidade de 1 (um) grama como produto final, que vem a ser o nosso glorioso açafrão?!

 

E o tartufo italiano, o branco de Alba: quantos deles foram jogados no lixo antes que algum gênio renascentista descobrisse que seu cheiro forte (semelhante a gás de cozinha) e a massa tenra deveria ser aproveitado in natura finamente fatiado sobre outras iguarias (carnes e massas) recém elaboradas?

 

Tudo isto faz sentido quando imaginamos que a cozinha é, na verdade, um imenso laboratório. A química impera nas combinações de texturas, sabores, gazes, temperaturas, espumas, formatos e matérias diversas até que sejam descobertos os sabores.

 

A alquimia nos leva a combinar as descobertas por caminhos obscuros e muitas vezes fascinantes.

 

Daí surgem os livrões sobre as receitas de Monet, de Platão e outros coroas que não tinham outra diversão, quando davam folga ao seu ofício, senão ir pra cozinha fazer o que lhes dava prazer. Cozinhavam mas eram tão geniais que acabavam descobrindo outras coisas pelas quais ficaram conhecidos.

 

Senão vejamos, sem ir tão fundo – que pode ser dedução. Da Vinci deixou desenhos, esculturas, pinturas e escritos e apenas uma meia dúzia de 15 ou 20 receitas dele (dizem que é). Sopas, guisados, assados e bolos. Mas todo mundo sabe por causa de que ele tornou-se conhecido.

 

(Uma de suas receitas, um guisado de cabeça de cabra, é bem divertida. Manda dividir uma cabeça da cabra em duas metades no sentido do comprimento. Separar os miolos e a língua. Ferver o resto em água e sal com cenoura e um pé de cerefólio. Algumas horas depois, colocar o que restou num recipiente forrado, talvez um grande tabuleiro, sobre uma camada de polenta dura. Em seguida, colocar outra camada da mesma polenta por cima, fechando como uma tampa. Servir com um molho verde obtido com os miolos e a língua finamente picados e cozidos com o dobro do seu peso em flor de salsa.)

 

Passa longe a gente imaginar que para preparar pratos naquela época, que nos vem à cabeça através de recomposições do cinema, a higiene era fundamental para os grandes cozinheiros. (Chef é coisa de agora). Nada mais lógico, entretanto. Não dá para imaginar uma cozinha suja, engordurada, desorganizada, fedida e escura.

 

Sem querer sujar a barra deles, os restaurantes chineses estão muito perto disso. Certa vez, resolvi pegar marmita num chinês que havia no bairro de Lourdes (fechou). No dia que me deu na cabeça de entrar na cozinha dele, nunca mais voltei. Fiquei uns dois anos sem entrar num restaurante chinês – me privando de uma das culturas culinárias mais saborosos da gastronomia mundial.

 

Sujeira assim, creiam: é comum. Como é comum a montagem de um restaurante ser feita em prédio em que não foi prevista a presença de uma cozinha. É tudo adaptado. Consequentemente, as condições de higiene são também adaptadas.

 

Os cozinheiros mais cuidadosos cuidam disso com responsabilidade. Os picaretas – estamos cheios deles por todo lugar – acham que nós, os usuários, não merecemos essa sorte. Digo isso porque já estive em vários botequins, listados como bacanas, onde até o chão debaixo da mesa estava emporcalhado. Os pratinhos, garfos e facas tinham impressões digitais da família inteira dos donos. O copo onde tentei bebericar minha infalível Cuba era daqueles grossos que estava com a borda quebrada e engordurado por dentro. Todos devem ter falido!

Portanto, acho que uma boa providência das autoridades competentes

(municipais, estaduais, nacionais, mundiais, promotores de eventos, de concursos, de festivais, etc.) seria dar alguma importância ao item “saúde higiênica” de bares e restaurantes. Que tal uma inspeção antes de colocar o lugar na lista de recomendações e de concorrentes?

 

Afinal, não é preciso ser gênio nem empregado da Vigilância Sanitária para achar que limpeza de chão, paredes, tetos, utensílios, mesas, e tudo mais, incluindo o cozinheiro, da cabeça aos pés, incluindo as unhas, são ingredientes fundamentais em qualquer lugar do mundo da comida.

 

Pra não perder a fome.

 

*[email protected]

Anúncio