Contratos não reproduzem promessas das propagandas da startup imobiliária

Por Kênio de Souza Pereira

Na época do Natal é inevitável fazer um paralelo entre o símbolo mitológico dessa data tão importante, o Papai Noel e o mundo mágico criado pelas imobiliárias virtuais, que vendem a ideia de que não existe inadimplência no Brasil, a ponto de promoverem locações dispensando as garantias legais tradicionais.

Um dos destaques em 2019 foram as imobiliárias virtuais que intensificaram as propagandas que prometem o recebimento de aluguéis e dos reparos quanto a danos eventualmente causados no imóvel, sem a necessidade de fiadores, seguro de fiança locatícia ou outra garantia prevista pelo artigo 37 da Lei de Locações, n° 8.245/91.

Para dispensar uma garantia locatícia é preciso ter a certeza do recebimento dos alugueis e encargos, pois do contrário, qualquer locação representará transtorno, insegurança e prejuízo aos locadores, que na grande maioria dos casos depende dessa fonte de renda para manter-se.

Ocorre que o cenário brasileiro indica o oposto do que prometem as imobiliárias virtuais, pois o SPC e a Serasa registraram em 2019 mais de 63 milhões de inadimplentes no Brasil, o que representa 42% da população ativa, sendo óbvio que dentre estes milhares são inquilinos. Apenas em Belo Horizonte, a 31ª Vara Cível, única da Comarca especializada em locações, acumula mais de 11 mil processos em andamento, sendo a maioria despejos por falta de pagamento.

Promessas mirabolantes depois estouram em prejuízos

Esses números demonstram que só quem acredita em Papai Noel pode achar normal alugar um imóvel sem as garantias legais, pois a experiência de décadas comprova que até mesmo com tais garantias há uma dificuldade de recebimento pelo locador quando o inquilino perde a capacidade de pagamento, o que é fácil diante do quadro de mais de 13 milhões de desempregados e com as empresas passando por dificuldades.

É importante analisar o passado para saber como proceder no presente e se preparar para o futuro. Nesse sentido vejamos alguns prejuízos coletivos marcantes da história:

Golpe do século na Bolsa: na década de 2000, Bernard Madoff, aperfeiçoou o tradicional golpe da pirâmide, transformando-o em um negócio para grandes investidores. A pirâmide só desmoronou em 2008, mais de dez anos depois do início do golpe, quando os investidores foram retirar o dinheiro devido à derrubada da Bolsa pela crise financeira de setembro daquele ano.

Madoff mineiro: no período de 2006 a 2010, o empresário Thales Emanuelle Maioline, aplicou um golpe semelhante em Belo Horizonte-MG. Oferecia às vítimas cotas de participação por meio do intitulado Fundo de Investimento Capitalizado (Ficap). Estas cotas variavam entre R$ 5 mil e R$ 5 milhões, com investimento mínimo de R$ 2,5 mil. O fundo prometia rentabilidade de 5% ao mês. Mesmo após ser preso em 2010, não devolveu o dinheiro dos investidores que desejavam ganhar cinco vezes a rentabilidade dos CDBs e Fundos de Investimentos legítimos.

Avestruz Master: o grupo Avestruz Master em 1998, oferecia contratos de compra e venda de avestruzes com compromisso de recompra dos animais. Assim, quem investisse em uma ave com 18 meses de vida, ganharia um retorno de 10% sobre a aplicação até o mês em que a avestruz fosse readquirida pela empresa. O lucro seria assegurado pela suposta exportação da carne, mas isso nunca ocorreu. Em sete anos de operação nenhuma ave foi abatida. Na teoria, a Avestruz Master teria comercializado mais de 600 mil animais. Na prática, só possuía 38 mil. A Justiça Federal condenou os responsáveis pelo golpe em 2010.

Pontocom: entre os anos de 1995 e 2000 ocorreu a formação da bolha das empresas de informática, período que as bolsas de valores dos países industrializados tiveram como principal destaque a forte alta dos preços de ações de companhias deste setor. Entretanto, em março dos anos 2000, o “sonho” acabou, pois as ações caíram 75% de março a dezembro de 2000 e até hone não se recuperou, levando à falência milhares de investidores. A maioria das PontoCom encerram suas atividades, sendo que muitas nem chegaram a dar lucro. Isso lembra hoje várias startups que só têm dado prejuízos apesar dos aportes milionários com “capitais tóxicos”, sem origem definida.

NegocieCoins, considerada a maior corretora de bitcoins do Brasil, deixou de pagar os investidores, conforme noticiado em julho deste ano. O Poder Judiciário ao ser acionado pelos credores de centenas de milhões de reais determinou a penhora de bens e valores nas contas da NegocieCoins, mas nada foi encontrado.

Em regra a população é facilmente iludida por novidades, por promessas mirabolantes com lucro, ignorando cuidados básicos. O brasileiro é inocente e crédulo, pois não aprofunda no negócio, além de adorar as inovações que prometem facilidades.

Entretanto, infelizmente, o Brasil é também conhecido por pessoas e empresas capazes de atos absurdos por dinheiro, como a clínica veterinária que congelava os animais de estimação de que tratava para cobrar diárias por mais tempo dos seus clientes e de médicos que reutilizam próteses mamárias de silicone retiradas de outras pacientes ou até de pessoas que faleceram. Tal rotina simplesmente impede que a regra no exterior, na qual o número da prótese serve para identificar um cadáver, não seja aplicada no Brasil.

A frase popular “o Brasil não é para amadores” representa bem o cenário em que vivemos, motivo pelo qual não se deve ser incauto ou crédulo diante de promessas grandiosas ou que pareçam boas demais para ser verdade.

Locação de imóveis sempre teve risco, por isso existem as imobiliárias

Há décadas, quando o “fio de bigode” tinha algum valor, a Lei do Inquilinato já previa as garantias nas locações para proteger os locadores de prejuízos causados pela inadimplência do inquilino, sendo óbvio que nos últimos anos os riscos aumentaram.  Cabe ao locador não abrir mão desse direito, pois se não existisse inadimplência e as garantias não fossem necessárias, as administradoras de imóveis seriam inúteis e as locações seriam feitas diretamente entre locador e o inquilino.

Porém, essa não é a realidade e que fique claro: Papai Noel não existe. Com o objetivo de esclarecer os riscos de prejuízos, especialmente, quando o imóvel é desocupado pelo inquilino, a OAB-MG promoveu um Seminário, sendo que as três palestras estão no Youtube com o título, “Inédito: os segredos do Quinto Andar desvendados na OAB/MG”. Seria interessante que os locadores lessem atentamente os contratos dessas startups imobiliárias, pois nas mais de duzentas cláusulas e parágrafos descobririam que não existe a palavra “garantia” escrita em nenhum lugar, exceto nas propagandas virtuais.

*Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-MG

Conselheiro do Secovi-MG e da Câmara do Mercado Imobiliário de MG

Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário

[email protected] – tel. (31) 2516-7008

*Este texto não transmite a ideia da publicação.

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