Jose Pastore*

 Introdução: o cenário

A cada dia a imprensa publica uma nova data para o pico da Covid-19 e anuncia promessas desencontradas sobre vacina e medicamentos. Assumindo a chegada do pico em agosto de 2020 e o surgimento de vacina ou medicamento no início de 2021, este ensaio apresenta considerações sobre o impacto da pandemia no mercado de trabalho e outros desdobramentos sociais.[1]

Com 60 dias de infecções, a pandemia quebrou inúmeras empresas brasileiras, destruiu 1,1 milhão de empregos formais[2] e afastou do trabalho cerca de 5 milhões de pessoas, 75% informais.[3] Sem políticas públicas, a taxa de desemprego teria saltado dos 12% atuais para 24% ou mais.[4] Graças às regras trabalhistas flexibilizadoras,[5] foi possível poupar mais de 8 milhões de empregos formais até o início de junho. O trabalho remoto também ajudou a manter muitas pessoas trabalhando. E a concessão de um auxílio emergencial de R$ 600,00 mensais para trabalhadores vulneráveis foi crucial para sua sobrevivência e consumo.

Tais providências foram tomadas no pressuposto de que a pandemia arrefeceria em 90 dias. Ocorre que o Brasil chegou em junho como o epicentro da pandemia, o que forçou muitas empresas a permanecerem fechadas ou a trabalharem com severas restrições.[6]

O Banco Mundial indicou que a crise da Covid-19 afetará os países emergentes por cinco anos,[7] sendo que no Brasil, a redução do trabalho e renda atingirá mais de 80% dos brasileiros.[8] Prevê-se uma recessão gravíssima, prolongada e inédita.

Nos dias atuais, grande parte das empresas sofre dificuldades imensas. Entre abril e maio de 2020, os pedidos de recuperação judicial subiram 70% e as falências, 30%. O governo passou a acenar com novas injeções de crédito para capital de giro. Apesar disso, firmas de pequeno porte passaram a demitir muitos empregados. Antecipa-se uma escalada do desemprego e forte queda de renda para 2020-21. Milhões de brasileiros ficarão sem emprego, sem recursos e sem perspectiva de trabalho nesse período.

Impactos na saúde

Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) seja um projeto louvável pelo seu caráter universal e gratuito, ele se revelou insuficiente no caso da Covid-19. O SUS já vinha sofrendo em decorrência da prolongada recessão de 2015-17. Ao serem demitidos, milhões de trabalhadores ficaram sem planos de saúde e passaram a pressionar o SUS. Com a chegada da pandemia, o problema se agravou. Em muitos estados já houve grave colapso hospitalar. Isso compromete a sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas.

Impactos na pobreza e na desigualdade

O aprofundamento da desigualdade decorrente da pandemia é um fenômeno mundial.[9] No Brasil, isso é ainda mais claro. Os pobres têm maior probabilidade de se infectar, adoecer e morrer.[10] Prova disso é a disparada do contágio entre os moradores das favelas, onde é impossível obedecer ao distanciamento social. Os analistas estimam um aumento de 60% da extrema pobreza (US$ 1.90 ao dia per capita).[11]

A pandemia lesionará também a classe média. Profissionais mais qualificados, desempregados e/ou substituídos por tecnologias tendem a descer na escala social, o que gera frustrações e compromete a coesão social.[12] Muitos empregos serão perdidos para sempre.[13] Será um tempo de muita apreensão.

Impacto sobre as mulheres

Historicamente, as recessões sempre impactaram mais os homens do que as mulheres. Na pandemia atual, dá-se o inverso porque as mulheres são a maioria nas atividades paralisadas ou semi paralisadas (escolas, creches, turismo, hotéis, entretenimento, salões de beleza, oficinas de costura, etc.). Além disso, elas são maioria entre os trabalhadores informais – os mais desprotegidos.[14]

Por cima do desemprego há o aumento da violência doméstica e sexual nos domicílios mais pobres, onde homens adultos vivem de forma aglomerada com mulheres e meninas.[15] A violência ainda é muito sub-notificada por medo que elas têm dos homens.[16]

O reingresso das mulheres no mercado de trabalho será igualmente doloroso. Muitas terão de aceitar trabalhos precários, desprotegidos e de menor renda.[17]

Impactos sobre as crianças

Os impactos da Covid-19 sobre as crianças são preocupantes tanto na esfera educacional como na nutricional. A suspensão das aulas determina grave defasagem educacional e também sérios déficits nutricionais, porque as crianças mais pobres dependem da escola para se alimentar (merendas, lanches, sucos, etc.). A desnutrição levará a maior adoecimento. A deterioração econômica dos adultos forçará o engajamento de crianças e adolescentes em atividades laborais precárias do mercado informal, novamente, com reflexos negativos na sua saúde e na sua educação.

Impactos políticos

O aumento da desigualdade, da pobreza e da mobilidade social descendente gerarão frustração e descontentamento que tendem a desaguar em movimentos sociais que, aliás, já começaram nas grandes cidades.[18] A onda de protesto interracial dos Estados Unidos alastrou-se rapidamente para vários países, misturada com o desemprego provocado pela pandemia. Por serem fenômenos de multidões, é difícil identificar os seus componentes com precisão e prever as suas conseqüências. Multidões têm sempre vários fatores causais, mas, com freqüência, se desdobram em condutas antidemocráticas que exigem ações policiais.[19] A pandemia não é causa, mas está por trás dessas condutas devido ao estrago provocado pelo alto desemprego e severa queda de renda. Muitas manifestações políticas virão durante a pandemia.[20]

Impactos na cultura

O setor cultural e de entretenimento costuma ficar de fora nas análises das recessões. Com a Covid-19, o fechamento ou abertura restrita dos teatros, cinemas, museus e galerias e outros ambientes desamparou por completo os profissionais dessa área que, na maioria, são free lancers, informais, que recebem por trabalho realizado e, por isso, ficam sem nenhum recurso.[21] Só no início de junho, o governo aprovou R$ 3 bilhões para ajudar os profissionais e os grupos culturais e de entretenimento, o que parece insuficiente para atender a cerca de 5 milhões de artistas, entre técnicos e pessoal de apoio.

Conclusão

Os impactos sociais da Covid-19 serão de longa duração. O desemprego será brutal. As regras de flexibilização trabalhista terão de ser prorrogadas. Elas perderão potência com o avanço da crise. O problema do déficit fiscal por elas gerado terá de ser resolvido no futuro.

Os brasileiros em geral ficarão mais pobres e mais desiguais. A atenuação do sofrimento exigirá muito trabalho dos agentes econômicos e dos governantes. Destes, espera-se uma liderança racional, confiável e que transmitam esperança ao povo.

Finalmente, a pandemia trará mudanças na globalização. Depender da China como fábrica do mundo traz riscos irreparáveis. Muitos países procurarão diversificar sua produção.[22] É um grande desafio. No Brasil, será necessário melhorar muito a qualidade da educação e investir maciçamente em pesquisa e desenvolvimento.

Recomendações de políticas sociais

  1. Manter as regras trabalhistas flexíveis pelo tempo que for necessário.
  2. Implementar linhas de crédito com garantia do governo para evitar a falência das empresas.
  3. Manter o auxílio emergencial para os trabalhadores informais e formular um programa de renda mínima que contenha mecanismos de saída.
  4. Aprovar regras de proteção social para os trabalhadores por conta própria informais e sem vínculo empregatício.[23]
  5. Definir políticas específicas para a proteção de mulheres e crianças.
  6. Articular o uso de tecnologias modernas com programas de educação e qualificação continuadas.
  7. Manter serviços de apoio psicológico para pessoas afetadas na sua saúde mental.

*Professor da FEA-USP; Membro da Academia Paulista de Letras. Presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomércio-SP.

[1] Sobre os vários impactos da Covid-19, ver Thomas V. Conti, “Crise Tripla do Covid-19: um olhar econômico sobre políticas públicas de combate à pandemia”, Texto para discussão, 2020.

[2] Dado do Cadastro Geral de Emprego e Desemprego, abril de 2020.

[3] IBGE, Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, maio de 2020.

[4] Naércio A. Menezes Filho e Bruno K. Komatsu, “Simulações de Impactos do Covid-19 e da Renda Básica Emergencial sobre o Desemprego, Renda e Pobreza e Desigualdade”, Policy Paper nº 43, São Paulo: INSPER, 2020.

[5] Medidas Provisórias 927 de 22/3/2020 e MP 936 de 1/4/2020.

[6] Só puderam operar as empresas dos setores essenciais (agricultura e pecuária, comércio de alimentos e higiene, transporte, segurança, farmácias, hospitais, abastecimento de combustível, etc.).

[7] Josh Zumbrum, “Crise afetará por até 5 anos os emergentes”, Valor, 3/6/2020.

[8] Crise do coronavírus expõe 81% da força de trabalho a risco de perda de renda, Folha, 18/4/2020, https://www1.folha. uol.com.br/mercado/2020/04/crise-do-coronavirus-expoe81-da-forca-de-trabalho-a-risco-de-perda-de-renda.shtml

[9] Abi Adams-Prassi e colaboradores, “Inequality in the impact of Coronavirus shock: evidence from real time surveys”, Bonn: Institute of Labor Economics, abril de 2020.

[10] Leila Souza Lima, “Jovens mais pobres são vulneráveis ao Covid-19”, Valor, 14/5/2020.

[11] Bruno Villas Boas, “Desigualdade de renda tende a crescer”, citando estudos de Francisco Ferreira do Banco Mundial, Valor, 25/05/2020; Marcelo Neri, “Como o Covid-19 aumentará a pobreza e a desigualdade no Brasil”, Centro de Políticas Sociais, Fundação Getulio Vargas, 25/5/2020.

[12] José Pastore, “A classe média está espremida”, O Estado de S.Paulo, 26/12/2019.

[13] Nos Estados Unidos, estima-se que 40% dos empregos fechados não voltarão. Ver “Reopen and shut”, The Economist, 16/5/2020.

[14] United Nations, “The impact of Covid-19 on women”, New York: Policy Brief, 2020.

[15] United Nations, “Covid-19 pandemic triggers devastating social, economic impact on women and girls”, New York, abril de 2020.

[16] Emanuele Souza Marques e colaboradores, “A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pelo Covid-19”, Cadernos de Saúde Pública, abril de 2020; Pâmela Rocha Vieira e colaboradores, “Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela”? Revista Brasileira de Epidemiologia, abril de 2020.

[17] Raquel Llorente Heras, “Impacto del Covid-19 en el mercado de trabajo: un análisis de los colectivos vulnerables”, Serie Documentos de Trabajo nº 2, Universidad de Alcalá, 2020.

[18] Protestos contra e a favor do governo.

[19] Marike Blofeld e colaboradores, “Assessing the political and social impact of the Covid-19 crisis in Latin America”, GIGA Focus, nº 3, abril de 2020; “Estresse causado pela pandemia do Covid-19 pode levar a conflitos sociais”, Brasília: IPEA, 08/4/2020.

[20] Branko Milanovic, “The real pandemic danger is social collapse”, Foreign Affairs, 19/3/2020.

[21] “Coronavirus and cultural and creative sectors: impact, innovations and planning for post-crisis”, Paris: OECD, 2020.

[22] Assis Moreira, “Países deverão rever produção doméstica”, Valor, 25/5/2020; “Goodbye globalisation”, The Economist, 16/5/2020; Globalisation unwound: has covid-19 killed globalisation? Leaders Magazine, 14/5/2020; Alexander Jung, “The future of global economy: the beginning of de-globalization”, Der Spiegel, 8/5/2020.

[23] Sobre o assunto, ver José Pastore, “O trabalho do futuro e o futuro do direito”, Revista LTR, setembro de 2019; “A proteção do trabalho independente”, Folha 19/8/2019.

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