Homenagem a Ezio Vanoni

Jayme Vita Roso
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“O homem é essencialmente contraditório.
Seu fim natural é o sobrenatural: tornar-se como Deus, o Outro! Somente assim é ele mesmo”
(Silvano Fausti)

1. Contrapondo a reflexão rousseauniana do bem de uma pessoa que “faz necessariamente o mal de outro” . Camus, ao abordar o bem comum, como o bem geral ou bem público, o definiu, com a usual maestria: “o bem público é o fato de ser a felicidade de cada um” .

2. Pois é, a septuagenária Constituição italiana (em vigor desde 1/1/1948), com auto regulamentação no propósito temporal e bilimitado para sua revisão (limites explícitos e direitos implícitos) e em respaldo na Corte Constitucional já precisou, com extrema clareza, que ela contém alguns princípios constitucionais superiores que não podem ser alterados nos seus conteúdos essenciais, mas por leis que tratem expressamente de revisões constitucionais ou leis constitucionais: em suma, são limites absolutos ao poder de revisão constitucional” (Sentença nº 1146/1988).
3. No título IV, que cuida das Relações Políticas (vínculos, liames, contatos) (artigos 48/54), um deles, o art. 53, merece, neste escrito, uma particular atenção, face à face o seu texto: “Todos (cidadãos) são convocados a contribuir com os gastos públicos em virtude da própria capacidade contributiva”.
O sistema tributário é modelado com critérios de progressividade .
4. Diante de uma específica norma constitucional, cravada na Parte I, que abrange os Direitos e os Deveres dos Cidadãos, partindo das Civis (art. 13/28), das Éticas-Sociais (art. 29/34), das Econômicas (art. 35/47) e, finalmente, das Políticas (art. 48/54), sobre a última categoria, muitas dúvidas têm surgido ao longo das décadas e, perfilando com elas, mais discussões políticas, capitaneadas por fortíssimos movimentos populares, elevando as tensões por partidarismos de extremas direita, esquerda e outras matizes! Tudo isso na Itália!

Chamou-me a atenção, e insisti em levar em conta que o substantivo cidadão, no plural, foi utilizado em todos os artigos do Título IV, porém, estranhamente, omitido no art. 53, que está sob nosso foco, pela peculiaridade com que trata o seu conteúdo! E evitei dar interpretação fora da norma, segundo o antigo modelo francês
Seria um trabalho heroico revisitar os momentos históricos que levaram o Parlamento italiano a construir a Constituição pós-fascismo! E, agora, pretendendo contribuir com a exegese lato-sensu do art. 53, alvitro que o legislador omitiu o substantivo cidadãos (no plural), porque, em isso fazendo, levou a considerar todos os residentes a serem contribuintes. Com tal decisão, não desobriga serem contribuintes, ainda mais com todas obrigações sociais, as empresas localizadas em território italiano. Tem mais. Dez anos, inaugurando o Mercado Comum e a institucionalização da Comunidade Europeia com a prevalência excepcional do direito comunitário e a relativa abrangência do direito nacional, o universo jurídico, político e social foi convulsionado. Aos poucos, está sendo consolidado, mas, com o Brexit e os movimentos nacionalistas, quaisquer previsões poderão ser ofuscadas pelo que vier a ocorrer!
5. Diante desse panorama, restrinjo-me a versar sobre o cidadão (assomado ao residente) ao dever de pagar os impostos e, tendo em conta, que a Constituição inseriu esta obrigação no Título das Relações Políticas, assim o penso e o trato: o dever de exigir que os políticos deem uma boa, adequada e justa destinação (administração) dos recursos pagos pelos cidadãos, pois ele vieram do seu trabalho .
5.1. No pano de fundo da exposição e no mirante do bem comum, a inegável influencia da Doutrina Social da Igreja, desde sempre, considerou insuficiente a teoria liberal do direito, como derivante de soberania do Estado, porém, considera que o tributo expressa o vínculo do cidadão ao Estado, não só na identidade dos interesses do contribuinte e do Estado como na perseguição ao bem comum .
5.2. Que se possa pensar, ainda mais, sobre o que exige o cumprimento do Estado para o bem comum quando ele, Estado, cobra e impõe duas regras para compelir o cidadão a cumprir este dever? Hoje, na democracia liberal, com a tripartição dos poderes, ocorrendo uma escandalosa miscigenação de competências na criação de tributos, sem a contrapartida na sua aplicação?
5.3. Há flagrante desvio de finalidades na democracia liberal, quando, como Pilatos, se esquiva de cumprir com seu dever ontológico de atender à suas finalidades, “porque o bem comum exige que os tributos e a organização financeira do Estado tendem o mesmo escopo e a mesma legitimação política da dimensão cooperativa e mutualística da sociedade” (lembrando Salutati). E, mais, este autor, sustenta com E. Vanoni, que: “O estado, a economia pública e o tributo representam os instrumentos principais desta visão cooperativa – mutualística – da sociedade e, por conseguinte, do próprio Estado. O tributo e a despesa pública devem ser repensadas e medidas para avaliar a utilidade social que lhe é correspondente e a ação pública (a atividade do Estado) não deve jamais andas contra este objetivo”.
5.4. Para concluir, a interpretação que Salutati propõe sobre o art. 54 da Constituição italiana: “O preceito em questão deve ser melhor entendido, tudo na devida contra as peculiaridades que caracterizam o específico ordenamento republicano italiano no qual ele se alinha. A primeira é representada no fato de que a Constituição avizinha aos direitos de uma mesma série os direitos civis, políticos, estranhas à tradição do constitucionalismo liberal… isto preferivelmente à colaboração ativa e solidária, no intento de integrar entre eles, na forma original, os direitos, os poderes e os deveres… em maneira diferentes com respeito à tradição liberal, de sorte a resultarem coerentes com o assunto fundamental da soberania popular e da igual dignidade e liberdade dos cidadãos (G. Sirianni), uma liberdade e dignidade que e disciplina e honra tutelares também por meio imposição fiscal”.
6. Imagina-se que isso ocorre na Itália?
Não, nada disso lá se passa, como tenho experimentado e vivenciado na Península desde 1964. São tantas as causas e as concausas que poderiam caber em centenas de páginas. E não escondo que há uma generosa biblioteca que cuida com proficiência destes desvios!
Mas, há, nestes últimos tempos, vozes que clamam, sobretudo, contra a má aplicação das verbas públicas, salários indevidos e benefício ridículos.
Quanta falta faz… Vanoni!

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