*Eulália Alvarenga *João Pedro Casarotto

No momento que escrevemos este artigo, o País vive sob a pandemia do coronavírus. Pensamos no que poderia ter sido aplicado na saúde, educação e saneamento básico se os estados não tivessem aderido ao Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (PROES), criado pela Medida Provisória nº 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, e ao Programa de Reestruturação e de Ajuste Fiscal (PAF), criado pela Lei Federal nº 9.496, de 11 de setembro de 1997. Com a adesão a estes programas, as dívidas púbicas estaduais foram assumidas pelo governo central, em um acordo leonino, desequilibrado, abusivo.

As condições para o refinanciamento impostas pelo governo central foram extremamente onerosas, pois foi exigida a título de atualização monetária a aplicação do IGP/DI – índice calculado pela instituição privada Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, acrescido de juros de 6,00 ou de 7,5% a.a., capitalizados mensalmente.

A variação da taxa ficou condicionada à entrada inicial. A taxa de 6% foi aplicada para aqueles Estados que pagaram inicialmente 20% da dívida. Este foi o caso da maioria dos Estados, como o Rio Grande do Sul. Para aqueles que pagaram 10% na assinatura do contrato a taxa foi de 7,5% a.a., como ocorreu com o contrato de Minas Gerais.

Este pagamento inicial foi bancado pela privatização de patrimônio público que, pela brevidade, tudo indica, foi alienado sem qualquer levantamento para a apuração do seu valor real.

O impacto do IGP/DI (calcula a variação dos preços com ênfase em preços altamente suscetíveis à variação cambial), normalmente bem superior à inflação medida pelo IPCA (índice que mede a inflação oficial brasileira calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística-IBGE), alterou significativamente a evolução da dívida dos estados. As receitas estaduais tendem a acompanhar a variação da inflação, ficando evidente que a dita renegociação fez com que as dívidas estaduais com a União se transformassem em um débito impagável.

No entanto, o que mais impactou as dívidas estaduais foram os juros cobrados. Os Estados que assinaram o contrato com correção monetária pelo IGP/DI e juros de 6% a.a., esses capitalizados mensalmente se transformaram em 6,17% a.a. -no período de janeiro de 1999 a dezembro de 2017. As   dívidas variaram 1.379% no período, enquanto a variação do IGP/DI foi de 342% e a variação do IPCA de 237%. O desrespeito ao federalismo foi tão grande tendo em vista ao ônus excessivo, com a aplicação do IGP/DI mais a cobrança de juros, permitiu que a União obtivesse lucro financeiro exorbitante.

Vale lembrar que o procedimento da União com os entes federados foi diametralmente oposto aos aplicados aos empréstimos concedidos pelo BNDES e aos Programas de Regularização dos Devedores da Receita Federal – REFIS. O montante pago pelos Estados desde a assinatura dos acordos, mensalmente, não foi suficiente para quitar juros e amortizar o principal e acabou gerando um passivo despropositado. Passivo este, vale dizer, meramente escritural. Cabe salientar que a crise financeira que os Estados enfrentavam à época decorria, principalmente, das medidas econômicas implementadas pelo governo central e, portanto, não faz o menor sentido a cobrança de juros, já que juro é sinônimo de lucro. Assim, a questão da sustentabilidade financeira da dívida dos Estados tornou-se central.

De acordo com os números do Banco Central de dezembro de 2019 a dívida dos estados junto à União totalizava R$ 565,1 bilhões, o que equivale a 7,8% do PIB – Produto Interno Bruto.

É importante mencionar a forte concentração da divida estadual junto à União.  Apenas quatro Estados respondiam por 88,4% do total, em setembro de 2019: São Paulo (42%), Rio de Janeiro (18,9%), Minas (16,3%) e Rio Grande do Sul (11,3%). Dentre esses, somente São Paulo tem capacidade de endividamento, tendo nota B na classificação de situação fiscal. Os demais Estados citados acima estão numa situação fiscal muito precária.

Fonte: DIVIDAS DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS.STN PAG 96

FONTE: DIVIDAS DOS ESTADOS E MUNICIPIOS.STN PAG 107

FONTE: DÍVIDAS DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS.STN PAG 111

Foram muitas disputas judiciais contra esses acordos da década de 1990.  Em 2016, diversos estados conseguiram liminares do Supremo Tribunal Federal -STF – suspendendo o pagamento da dívida com a União até que se entrassem em um acordo. Nesse mesmo ano foi editada a Lei Complementar – LC 156 que flexibilizou o pagamento de juros e amortizações. A LC 156/2016 alongou a dívida com a União por mais 20 anos, diluindo o pagamento do principal, e estabeleceu limites para o crescimento da despesa primária por dois exercícios financeiros, entre outros pontos.

Segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional – STN o percentual do abatimento com a aprovação da LC 156 foi de 8,8% para o Rio Grande do Sul (o saldo da dívida caiu R$ 4,9 bilhões em primeiro de julho de 2016). Para Minas Gerais o percentual de queda foi de 10,6%, base abril de 2017 (o equivalente a R$ 9,5 bilhões de redução). Deve-se levar em conta que a diferença de abatimento se deve ao percentual de juros, enquanto o contrato do Rio Grande do Sul a taxa foi de 6% a.a., o de Minas foi de 7,5% a.a. A diferença na taxa aplicada, foi devido a entrada dada na assinatura do contrato, como dizemos acima. O recálculo da dívida teve redutor devido à troca de indexador limitado pela taxa Selic (estabelecido pela LC 148), além do alongamento de prazos (estabelecido pela LC 156).

A discussão não terminou com a edição das leis complementares citadas. Ultimamente, a União nos apresenta como única solução para equacionar a sustentabilidade financeira dos Estados, a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal – RRF, instituído pela Lei Complementar Federal 159 de 19/05/2017. As condicionantes estabelecidas para a adesão ao RRF são vinte e uma. Nove são relativas à despesa com pessoal, uma referente à privatização das empresas dos setores financeiros, de energia e de saneamento, e outros. Chamamos atenção para a abrangência “e outros”, tendo em vista que esta expressão poderá abranger uma enorme quantidade de empresas do patrimônio público.

Para assinar o RRF o Estado terá que desistir de eventuais ações judiciais que estejam em andamento cujo objeto seja a dívida ou o contrato de 1998.

Com a adesão ao RRF o pagamento da dívida com a União será suspenso por 3 (três) anos, prorrogáveis por mais 3 (três).  Observa-se que haverá apenas suspensão dos pagamentos da dívida e nada mais. Aos valores suspensos serão acrescidos os encargos, mensalmente, adicionados ao saldo devedor.

Apenas o Estado do Rio de Janeiro aderiu ao RRF, em setembro de 2017, o que não melhorou as finanças do Estado. Os Estados do Rio Grande de Sul e Minas Gerais estão em negociação para adesão ao regime. Vale ressaltar que estes três Estados respondiam, em setembro de 2019, por 46,4% do montante das dívidas dos Estados com a União.

Para se ter ideia do que representou para o Rio de Janeiro a adesão ao RFF, transcrevemos dados do Instituto Fiscal Independente, órgão vinculado ao Senado – Estudo Especial – Relações Financeiras entre União e Estados, de mar/2020, pag12:

“A tabela 4 mostra o aumento da dívida do Rio de Janeiro junto à União em razão do acúmulo de pagamentos suspensos e garantias honradas, somados à incorporação dos juros e atualização do saldo. Em setembro de 2017, eram R$ 7,6 bilhões em pagamentos suspensos e R$ 1,8 bilhão em garantias honradas, ambos relativos ao período anterior, em um total de R$ 9,5 bilhões. Com os novos fluxos, a dívida cresceu continuamente até que o incremento chegasse aos R$ 39,5 bilhões em dezembro de 2019, sendo R$ 26,8 bilhões de pagamentos suspensos e R$ 12,7 bilhões de garantias honradas13.

Os R$ 39,5 bilhões são a medida dos recursos gastos ou que deixaram de ser recebidos pela União durante o Regime de Recuperação Fiscal do Rio, acumulados e capitalizados, de 2016 a 2019. Em vista do cronograma de vencimento das operações de crédito do Rio garantidas pela União, conforme mostra a tabela 3, e da continuidade da suspensão dos pagamentos relativos à dívida do estado junto à União, o valor aumentará continuamente até setembro deste ano, quando vencem os 36 meses de vigência do regime e, possivelmente, por mais 36 meses, com a prorrogação do prazo por igual período. Vale lembrar que, de acordo com a LC 159, se houver renovação, a execução das contragarantias e os pagamentos suspensos deverão ser retomados progressivamente até que retornem à normalidade em setembro de 2023.”

O Estado que aderir ao RRF terá sua soberania afetada. Será criado um Conselho de Supervisão, um triunvirato nomeado pelo Presidente da República, que atuará junto às secretarias de fazenda estaduais.

O custo deste Conselho, quase todo, será suportado com recursos do ente federado e  terá, entre outras, as atribuições de limitar o crescimento das despesas obrigatórias; exigir a venda, em época de baixa, de todo o patrimônio público; requisitar informações; contratar consultorias; e autorizar novos empréstimos, inclusive as operações de securitização de direitos creditórios;  monitorar o cumprimento do plano, além de determinar as correções de rumo que julgar necessárias e de, pasmem, notificar autoridades. Ou seja, este Conselho irá governar sem ser eleito.

Falsos mascates financeiros estão induzindo as autoridades financeiras dos Estados a cometerem um crime letal contra as finanças públicas e, também, contra a Federação brasileira ao proporem a securitização da dívida ativa por meio de fundos ou de sociedades de economia mista, que  geram custos milionários com juros abusivos; prêmios; comissões; multas por descumprimento de cláusulas leoninas; e com empresas bancárias, de distribuição de valores, de “rating”, de custódia, de auditorias e de consultorias.

Além disto, estas operações de securitização utilizam a máquina pública – procuradorias e fazendas estaduais – e incentivam nefastas triangulações financeiras com o não pagamento de tributos e a consequente inscrição do devedor em dívida ativa, que, na outra ponta, pode se habilitar na compra dos títulos emitidos nestas operações.

Diante do exposto ao longo deste artigo, consideramos que as condicionantes para adesão ao RRF pelos Estados e Distrito Federal são um ataque à soberania dos mesmos. É urgente a recomposição da autonomia que a Constituição Federal confere aos entes federados. Sem a menor dúvida, estamos destruindo a forma republicana de governo e a forma federativa de organização do Estado brasileiro.

O momento não é de redução do tamanho do Estado. Estamos em uma profunda crise econômica e social e precisamos de investimentos e não de mais cortes. Diante da pandemia a ação estatual necessita tornar mais urgente o atendimento à população, prioritariamente os mais necessitados.

Em âmbito nacional devemos lutar pela revogação da Emenda Constitucional 95/2016 que instituiu o teto de gastos, destinando durante 20 anos a prioridade para pagamento de juros e amortizações da dívida pública.

Os entes federados – União, Estados e Municípios –  devem cumprir o preâmbulo da Constituição do País – “… um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

[1] Para manter a objetividade e a clareza deste texto, dispensamos as citações em trechos iguais ou semelhantes anteriormente publicados em diversos tipos de mídia, inclusive redes sociais e apresentações, elaborados pelos autores.

2 Economista, especialista em administração pública e direito tributário, Auditora-Fiscal de Tributos Municipais, aposentada.

3 Contador, pesquisador sobre finanças públicas e Auditor-Fiscal da Receita Estadual do RS, aposentado

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