*Por Benedito Nunes

Desde a concepção de seus fundamentos estruturantes, o Capitalismo se apresentou como o modelo econômico de maior relevância na história de todas as sociedades. A partir de seu surgimento no século XVIII, sua promessa de desenvolvimento em todas as direções e para todos os públicos influenciou estudiosos, líderes globais e empresários em todo o planeta, e mesmo seguidamente questionado, principalmente pela classe trabalhadora na dialética do capital e trabalho, sua proposta resiste até os dias atuais. Parece, entretanto, que a sua fórmula, construída a partir das bases do pensamento iluminista, não deu muito certo. E, novamente, estamos às voltas com a busca de uma via que recomponha o nosso esgarçado tecido social e nos recoloque no caminho do desenvolvimento verdadeiramente sustentável.

No vasto repertório dessas tentativas, criamos as empresas B, os negócios de impacto, o empreendedorismo social, as empresas com propósito e o capitalismo consciente, sem falar no incansável trabalho da sociedade civil organizada. E cada um de seus idealizadores justificam suas ideias de forma ferrenha e determinada. Estão errados? Óbvio que não. O adoecimento do modelo tradicional está nos fazendo avançar rapidamente de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado com todas as suas consequências. A situação é tão grave e tão urgente, que todos as terapias são bem-vindas e até trazem uma certa dose de eficácia, embora também padeçam de uma boa dose de miopia. A questão é que, além de ações isoladas, sempre estamos mirando os sintomas e não as causas, o que parece ser um vício da própria natureza humana.

O que sustenta essa afirmativa? Entre outros fundamentos, o pensamento de um dos idealizadores do capitalismo, Adam Smith. Em sua obra, a Riqueza das Nações, ele escreveu: “A riqueza de uma nação se mede pela riqueza de seu povo e não pela riqueza de seus príncipes”. Algo mais inovador, justo e ético do que o modelo original do capitalismo? Parece que não. O que houve então? O elemento humano, o operador do modelo – o capitalista (e não o capitalismo) violando o grande propósito de gerar e distribuir riquezas, alterando a essência do conceito primário para gerar riqueza para poucos ao custo da miséria de muitos. Estamos matando o hospedeiro e se isso acontecer, morreremos juntos com ele.

A retórica dos discursos, seja nas esquinas, seja nas tribunas palacianas, fala que é urgente mudar, que o modelo está falido, que precisamos reinventar o capitalismo. Entretanto o que parece é que precisamos reinventar o ser humano, o operador da máquina capitalista que, diante do descuido de seus pensadores, embriagado pela ânsia do sucesso e indiferente aos danos colaterais, vem dirigindo um veículo desgovernado que a cada ano cria novos bilionários enquanto ceifa milhões de vidas inocentes em todas as partes do mundo. Esquecemos que, se de um lado temos a riqueza concentrada em alguns milhares de privilegiados, o que nem traz tanta felicidade assim, do outro temos bilhões de vozes que são sufocadas em seus direitos, em nome dessa perversa concentração de renda. Nada contra a geração de riqueza e se for de forma sustentável melhor ainda; a questão é como estamos distribuindo as riquezas que são geradas.

O fundador e CEO do Fórum de Davos, Klaus Schwab sugeriu em um de seus discursos mais recentes: “A quarta revolução industrial afetará a essência da nossa experiência humana. Conseguiremos enfrentar esses desafios de forma significativa se mobilizarmos a sabedoria coletiva de nossas mentes, corações, corpos e almas”. Temos a chance de reinventar o nosso futuro mais uma vez. Como faremos isso?

Ele e um batalhão de economistas, incluindo os laureados com o Nobel, líderes globais, executivos de grandes corporações, pensadores de vanguarda e pesquisadores acadêmicos das mais relevantes escolas mundiais estão convencidos de que uma mudança mais radical se faz necessária não só pela gravidade do quadro mundial como pela urgência das medidas estruturantes que precisam ser adotadas. Mas essa mudança passa pela reinvenção da nossa capacidade de pensar, de sentir, de vivenciar e de nos colocar no lugar do outro, algo que a história ainda não creditou à trajetória humana. Yuval Noah Harari, em sua obra Sapiens, nos dá a exata noção do que costumamos fazer quando queremos avançar em nossa sede de conquistas.

No recente encontro em Davos, Marc Benioff, fundador da Salesforce, empresa de software, disse durante um painel: “O capitalismo, como o conhecemos, está morto. Essa obsessão que temos em maximizar lucros apenas para os acionistas levou a uma desigualdade incrível e a uma emergência planetária”. Seu discurso foi referendado por Feike Sijbesma, executivo holandês e diretor executivo da DSM, ao mencionar na mesma sessão: “Talvez, em algum momento, nós nos atrapalhamos um pouco ao pensar que ganhar dinheiro é o objetivo real da economia, onde o objetivo real é viver felizes aqui todos juntos”. “O modo como fazemos negócios, vivemos e nos acostumamos na era industrial terá que ser mudado. Teremos que deixar isso para trás nos próximos 30 anos e teremos que mudar completamente para novas cadeias de valor “, também asseverou Angela Merkel em seu discurso.

Vale destacar que o conceito de stakeholders ou partes interessadas tão apregoado no encontro de Davos não é novidade no cenário da sustentabilidade e já vem sendo discutido a cerca de uma década, fortalecido pelo advento da IS0 26,000, cuja versão brasileira data de 2010. Ainda assim, na prática o que prevalece na maioria dos casos é o conceito de shareholder, ou seja, todas as atenções voltadas para o acionista.

O jornal O Estado de Minas, em sua edição eletrônica de 21 de janeiro deste ano, traz uma matéria interessante sobre a agenda do Encontro: “De uma mesa redonda sobre a solidão a uma conferência sobre empatia, passando por uma sessão diária de meditação, a elite econômica reunida no fórum de Davos busca desesperadamente o segredo da felicidade.” Sinal dos tempos? Acreditamos que mais do que simples pirotecnia, estamos admitindo as consequências dos equívocos seculares cometidos em nome de um modelo de negócios que, na essência, funcionaria bem se fosse descolado dos egoísticos interesses individuais, reconhecendo os benefícios de uma vida mais próspera em benefício de todos.

Mas são necessárias mudanças estruturais para frear nossa rota de colisão com o futuro, sugerido pelas premissas do estudo “Limites do Crescimento”, lançado em 1972 por pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology. Valendo-se de modelos matemáticos, os pesquisadores chegaram à conclusão de que o planeta não suportaria o nível de crescimento populacional e a pressão sobre os recursos naturais e energéticos e o aumento da poluição, mesmo considerando o avanço das tecnologias já existentes e em fase de desenvolvimento. Estamos muito próximos de confirmar essas teorias com o agravante de estarmos produzindo um efeito colateral importante: os altos níveis de adoecimento emocional da população. Como registra Jeffrey Pfeffer em sua obra Morrendo por um Salário, “Nós assumimos a responsabilidade pelo meio ambiente, reciclamos, gerenciamos carbono, mas de alguma forma decidimos não assumir a responsabilidade pelos humanos.”

Por este motivo, a sociedade espera mudanças urgentes e já manifestou a sua expectativa, insatisfação e capacidade de mobilização em vários momentos nos últimos anos, acendendo a luz de alerta dos governantes e das corporações. Devemos nos lembrar que “nem a raiva nem a fome são boas conselheiras”. É preciso mudar e logo, antes que seja muito tarde. Talvez por isso, atenta ao clamor vindo de todas as partes do planeta, a Agenda de Davos tenha se modificado significativamente em sua recente edição, introduzindo em seus debates uma abordagem mais humanizada.

Independente dos discursos patrocinados, do ativismo festivo ou da polarização de alguns governos, a presença humana no planeta precisa urgentemente ser revisada, com um olhar mais colaborativo e de menos competição. E talvez descubramos que não precisamos de mais regras, tratados e orientações, mas sim de pessoas que as respeitem, renunciando a interesses mesquinhos e egocêntricos em benefício de uma convivência mais humana, pacífica e duradoura. E essa mudança passa por um modelo de governança social integrada. Não apenas as empresas, ou o poder público ou a sociedade civil organizada, mas todos, integrados e sistêmicos em seus propósitos, para que os resultados possam reverter as tendências que nos acostumamos a ver todos os dias nos noticiários da TV ou das redes sociais.

Para inspirar e guiar nossos debates e ações, temos um novo repertório de orientações: os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Entre os dias 25 e 27 de setembro de 2015, a Cúpula das Nações Unidades para o Desenvolvimento Sustentável chegou a um acordo que estabeleceu esse novo conjunto de metas para, nos 15 anos seguintes, auxiliar na implementação do desenvolvimento sustentável. Em que pese as divergências conceituais e de aplicação (de novo o componente humano se faz presente) e os conflitos de interesses outra vez realçando o caráter individualista de nossas lideranças, seguimos avançando.

Além do mais, podemos perceber nos 17 Objetivos e em suas 169 metas um importante aumento nos níveis de preocupação com o ser humano. Se analisarmos com atenção o seu conteúdo, além do ODS 3 que trata da saúde e do bem-estar, veremos que todos os demais Objetivos possuem uma abordagem transversal atenta à vida humana, seus dilemas e desafios, com agendas propositivas demonstrando, de forma inequívoca, que o modelo que adotamos nos últimos 300 anos produziu graves consequências, representadas em números epidêmicos para a ansiedade, depressão, suicídio, afastamento do trabalho e aposentadoria por problemas emocionais, dentre outros.

O propósito do Instituto Movimento pela Felicidade é compreender e atuar nesses sintomas e suas causas e propor práticas de melhoria ciente de que elas exigirão uma profunda mudança de comportamento o que torna a terapêutica mais difícil, requerendo efetividade e determinação. Mas não podemos desistir. O Objetivo 3 – Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades e suas metas têm propostas claras, objetivas e factíveis para mudarmos esse quadro. E nós estamos, juntos a outras milhares de iniciativas em desenvolvimento no planeta, buscando equacionar esses problemas e encontrar as melhores soluções para eles.

Com firme propósito, nosso trabalho visa contribuir com algumas das Metas:

·         Reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar.

·         Reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas entorpecentes e uso nocivo do álcool.

·         Reduzir pela metade as mortes e os ferimentos globais por acidentes em estradas.

·         Fortalecer a implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco em todos os países, conforme apropriado.

·       Aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento, desenvolvimento e formação, e retenção do pessoal de saúde nos países em desenvolvimento, especialmente nos países menos desenvolvidos e nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento.

·         Reforçar a capacidade de todos os países, particularmente os países em desenvolvimento, para o alerta precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos nacionais e globais de saúde.

Para cada um desses desafios gigantescos estamos oferecendo uma pequena contribuição, acreditando no poder dos gestos simples, mas ao mesmo tempo, buscando ampliar parcerias e amplificar os benefícios de uma sociedade mais feliz. Entendemos que “a felicidade é um bem público, mesmo que sentido subjetivamente. Portanto ela não pode ser deixada exclusivamente a cargo de dispositivos e esforços privados. Se o planejamento governamental e, portanto, as condições macroeconômicas do país forem adversas à felicidade, este planejamento fracassará, enquanto uma meta coletiva.”

Para dar concretude a essa agenda, realizamos em dezembro de 2019 o 5º Encontro Internacional de Cidades Felizes quando foi lançada a Rede Latino-americana de Municípios pela Felicidade, contando inicialmente com a adesão de 10 prefeituras de Minas e 3 prefeituras de países amigos – Chile, Costa Rica e Colômbia. Em breve, podemos expandir essa Rede com a adesão de municípios do estado do Espírito Santo, onde as conversas já foram iniciadas.

Como atividades práticas iniciaremos em 2020 uma série de encontros com as prefeituras signatárias e outras candidatas, para propor a inclusão, de forma prática, da temática da felicidade em suas propostas de governo para as próximas eleições e acreditamos que a boa nova será muito bem-vinda pelas lideranças, que buscam incessantemente novas agendas que possam recompor os níveis de confiança da população nas instituições públicas.

Teremos assim mais uma oportunidade de resgatar o tempo perdido e recolocar o conceito de progresso na sua ênfase mais estruturante, focado não mais apenas nas questões econômicas e ambientais, mas considerando como premissa a humanização do desenvolvimento.

Se você também comunga dessas ideias, fale conosco; juntos podemos aumentar nossa capacidade de atuação.

Benedito Nunes, é professor convidado da Fundação Dom Cabral e Diretor Executivo de Sentido do Instituto Movimento pela Felicidade.

 

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