Aves da mesma plumagem
Aves da mesma plumagem
Aves da mesma plumagem

Olavo Romano*

Antigo provérbio ensina que aves de mesma plumagem voam juntas. Nas primeiras gerações dos Silveiras, de minha avó materna, figuram um português e uma negra, a filha de uma bugra pega a laço, até que os casais pudessem se formar em galhos da mesma árvore. Olímpio, meu bisavô, vinha de uma família numerosa, pobre, mas trabalhadora, unida e ambiciosa. Em uma geração, alguns ficaram ricos para os padrões da época. Tio Teodósio deu um dos trinta contos de réis para construir a igreja de Carmo da Mata. Tio Chiquinho deixou de herança 600 alqueirões, quase 3.000 hectares de terra. Meu bisavô, Pai Límpio, comprou a fazenda da Serra, mágico território de nossa infância, por cem contos de réis, juntados debaixo do colchão de palha e levados a Oliveira no alforje dos arreios. Na Serra, viviam tio Chagas e tia Marcolina.Ela morreu virgem aos 70 anos. Sepultada com vestido branco em caixão da mesma cor, foi “aguar o jardim de Nossa Senhora”,  enquanto ele torrou sua gorda herança. Tocando viola, vivia   cantando: “quando eu morrer, quero uma cova bem larga e bem funda, que é pra não machucar minha bunda”.  Vivia dos jurinhos pagos pelos parentes, que compraram para ele  um diploma de irmão remido da Terra Santa, “porque ganhava muitas missas”.

Um apanhado rápido mostra que o casamento de meus tios-bisavós Francisco e Antônio Machado da Silveira (Chiquinho e Antoninho) com Beralda e Mariana, filhas do capitão Sabino, impulsionou a  vida financeira deles. Na geração seguinte, Sebastião e Chico Sobrinho, filhos de Belarmino, o primogênito da irmandade do Pai Límpio, casaram-se com Isabel (Dona) e Laudelina (Ló), irmãs de Beralda e Mariana. Leandro e Laudelino, também filhos de Belarmino, casaram-se com as primas Lelé e Nhanhá, filhas de Chico Silveira, enquanto tia Lilita, irmã da Dinha, minha avó materna, casou-se com Zeca, filho de Belarmino.

Os irmãos Martinho e Valdemar saíram dos Pintos, berço dos Silveiras, e foram cortejar as primas Belinha, filha do tio Chiquinho, e Afonsina, prima em segundo grau, filha de Zuquita e neta de Pai Limpio. Uma geração depois, casaram-se José Maria e minha tia Zoé, netos, respectivamente, dos irmãos Francisco e Olímpio, assim como Erasmo, filho de Leandro, e a prima Zizita, quase menina, do mesmo modo que Amerquinho, primogênito de João Américo e Maria Beralda, neto, portanto, de Chico Silveira, casou-se com a prima Rafaela, filha de Laudelino e Nhanhá, neta de Belarmino e Chico Silveira. José Gabriel (Zico), neto de Olímpio, desposou Beraldinha, filha de Nhonhô e neta de Chico Silveira. Beralda, também presente no registro de Maria “do João Américo”, lembra sua própria mãe, primeira esposa de tio Chiquinho, que morreu grávida, em consequência de um raio.

Minha avó Zulmira se gabava de cinco tábuas dadas, ou seja, recusara cinco pedidos de casamento. Meu avô, o mais recente refugado, foi repescado para evitar que Tia Avelina se casasse antes da irmã mais velha, fazendo pinguela sobre ela, no dizer de então. Numa família em que todas as irmãs de minha mãe haviam se casado, ou viriam a se casar com primos, meu pai se sentia um estranho no ninho, vivendo entre parênteses no meio de tanto parente. Sem nenhum parentesco, era um primo entre pares.

Pai Límpio planejava casar os netos Josias e Tetão, criada com os avós. Chegou a rascunhar generoso testamento. Ela não quis: pouco mais velha do que ele, criados como irmãos, não tinha graça nenhuma. “Rasgou o testamento, fiquei pobrezinha”, lembrou Tia Tetão, aos 103 anos de bom humor e lucidez. O plano acabou funcionando com Amanda (Mandica), irmã de Tetão e de minha mãe, seis anos mais nova do que Josias – com direito a lua de mel em Santos, cidade que só depois Pelé tornaria famosa. Pai Límpio teria se admirado da rrriqueza dos netos.

Vivíamos em fraterna convivência, continuada em Oliveira, para onde as duas famílias se mudaram.

Na Chácara, permanecia viva a presença dos tios João Mingote e Avelina, pais de Josias. Dela, principalmente, no capricho com as flores, pomar com cana caninha, estalando só de ver a ponta do canivete, mexerica vermelha, perfumada, cheia de sementes, galinha d’angola, galinho garnizé, invocado e cantador. Ao fundo da costumeira algaravia, o tein-tein-tein do carneiro hidráulico que abastecia a caixa d’água. Uma nogueira com casca e folhas cheirando a iodo, o rádio com Repórter Esso e música caipira, mais os mugidos, latidos e miados figuram também no álbum de memórias. Sem faltar da amoreira grande, de cujas grimpas o menino míope se surpreendeu ao ver, de cima, o telhado da casa. No entanto, a atração inesquecível eram as histórias de seu Quinho, algumas gastando dois ou três serões, prenunciando as minisséries de décadas depois.

*Escritor, membro da Academia Mineira de Livros

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